sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

PALAVRAS AO VENTO

As palavras são baratas e leva-as o vento. As acções têm custos, marcam e ficam.
Justamente porque as palavras são baratas, não incorrer o pequeno custo de as dizer já diz muito. O custo de oportunidade de ouvir é maior; por isso, ouvir revela o valor que se espera do que se vai ouvir. Acho especialmente relevante o exemplo dos ministros que se demitem do Governo Britânico, e que, no seu regresso ao lugar de origem na House of Commons, fazem um discurso no qual explicam as suas razões e parte dos inner workings. Em geral, é demolidor para o Governo em exercício e para o partido no poder; mas é ouvido pelo Governo e pelos deputados com toda a atenção, sem que haja obrigação legal de cumprir esta tradição. É um exemplo notável de tolerância e liberdade, atributos nucleares do Estado de Direito Democrático. Neste caso, e como é típico da democracia, as palavras comprometem e são, em si mesmas, acções, e ficam. Temos muito a aprender com isso.
Tive uma carreira de luxo na Marinha e com muita sorte; revejo-a com prazer. Tendo-a interrompido e passado à reserva, por minha vontade, inspiro-me no exemplo que citei e, salvas as devidas adaptações, decidi dar público testemunho do balanço que fiz. A mensagem é construtiva, e visa os mais jovens, de que destaco os meus ex-alunos. É disso que se ocupa este texto, com o estilo directo que me define.
UMA TIRADA EM GRANDE
Pertenço ao Curso “Carvalho Araújo”; entrámos 37 em 1979 para a Escola Naval (EN); ingressámos 19 nos Quadros Permanentes da Marinha em 1984. Antes de 1979, nunca pensei em concorrer à Marinha, nem tive nenhum contacto com a Marinha ou militares. Os três primeiros anos na EN foram muito duros, mas superei a barreira e fiquei porque gostei. Apesar de ditas, literalmente, ao vento, marcaram-me as palavras do meu juramento de bandeira, no qual me comprometi a defender Portugal e a Constituição, se necessário com o sacrifício da própria vida. Reflecti nisto muitos anos, e concluí que servia o País na Marinha; não servia a Marinha, nem a sua Administração, e se devia obediência a esta, e a mais órgãos do Estado, o dever militar de obediência é um instrumento para servir o País; não é supremo e tem de se conciliar com o dever militar de lealdade, que obriga a informar superiormente a verdade.
Comecei por fazer o estágio no navio que desejava, o navio-tanque “S.Gabriel”. Como oficial Engenheiro Maquinista Naval (EMQ), interessava-me o vapor, a (bem) chamada “universidade técnica”. Aprendi muito com os oficiais do navio, e os reencontros trazem-me sempre excelentes memórias.
Depois estive um ano no Draga-Minas “Ribeira Grande”, que fazia os embarques de fim-de-semana com os alunos da EN. Para os enjoados, como eu, um draga-minas era um pesadelo. Não foi fácil, mas a comissão tornou-se muito agradável, pela guarnição e sobretudo os oficiais, e pelas missões atribuídas.
Podendo optar entre chefiar um serviço de máquinas numa corveta ou ser segundo de Máquinas numa fragata, optei pela “Magalhães Corrêa”, pela instalação a vapor e pelo chefe do serviço, o 1TEN EMQ Rapaz Lérias, cuja fama de profissional de “mão cheia” me prometia o desenvolvimento que procurava. Não me enganei; ele mostrou-me abundantemente que, por muitas razões, boas e más, demasiadas vezes falamos e actuamos sem sustentação; conhecer os factos e ter a certeza do que se afirma foram regras que cristalizei com ele e não abandonei mais, comigo e com os outros, para cima e para baixo.
Em 1987, tive, mais uma vez, sorte, ao ser nomeado para frequentar o curso de Engenheiro Construtor Nanal (ECN), no Reino Unido. Foi um processo atribulado: no primeiro concurso não fui seleccionado, e foi anulado; no segundo concurso, com diferentes critérios, fiquei apurado. Podia assim concretizar-se um desejo antigo da EN, onde a minha Memória de Fim-de-Curso foi um anteprojecto de um Patrulhão .
Com o 2TEN Bento Domingues, fiz o MSc in Naval Architecture na University College-London (UCL), com quase um ano de preparatórios na HMS “Manadon”, em Plymouth (já encerrada há mais de 10 anos). Com um ano de diferença, seguimos os 1TEN EMQ Rapaz Lérias e Cunha Salvado, retomando a escola iniciada com o (hoje) CALM REF ECN Rogério de Oliveira de formação dos oficiais ECN em conjunto com os Constructors do Ministério da Defesa britânico (UK-MoD). Tive, e os três camaradas referidos, a sorte de frequentar a Pós-Graduação em Projecto de Submarinos, também realizada na UCL; o corpo docente era baseado nos projectistas dos submarinos nucleares britânicos, o que diz tudo da sua valia. Ao concluir os cursos, o desejo de todos nós era projectar e construir navios, mas sabíamos bem que, cá, só por acaso teríamos essa possibilidade; por isso, registei um comentário de um colega inglês nos finais de 1990: “podes ter tido as melhores notas, mas nós é que vamos projectar os melhores navios!”
Logo após o curso, fui de novo bafejado pela sorte, com a realização de um estágio na construção das fragatas “Vasco da Gama”, na HDW-Kiel. A primeira tinha sido entregue uns dias antes, e pudemos navegar nela durante o estágio, já lá vão 20 anos; a segunda estava prestes a iniciar as provas, que acompanhámos; e a terceira estava em fase avançada de construção. Foi uma oportunidade ímpar de ver os navios numa fase crucial e de aprender o ofício. A realização deste estágio, único, deveu-se ao CALM ECN Balcão Reis, então Administrador do Arsenal do Alfeite, que suportou a despesa, a qual justificou, com uma rara visão, na oportunidade única que se oferecia para a formação dos futuros ECN. O estágio foi valiosíssimo, sobretudo nas vertentes de integração de sistemas e gestão do projecto, que era matéria muito destacada na UCL e ainda pouco valorizada entre nós. A importância da gestão, a visão integradora e a atenção ao cliente foram tópicos que não voltei a descurar daí em diante.
No regresso definitivo a Portugal, e depois de um estágio que envolveu a visita aos maiores estaleiros do país, pude escolher a minha colocação e optei pela Direcção do Serviço de Manutenção (DSM), onde teria que andar nos porões e conhecer intimamente os navios, quando ainda tinha energia para isso. Procurei aplicar com humildade os conhecimentos e experiência recentemente adquiridos, mas foi um período atribulado na DSM, sujeita a uma reorganização que marginalizava o único oficial ECN da casa; nem então tive visões corporativas, mas a lógica da reorganização escapou-me por inteiro. Não quero qualificar a relação com o meu chefe directo; reclamei das minhas informações, absurdamente baixas, de que soube porque pedi para as ver na Repartição de Oficiais; não pedi para sair, mas a Marinha determinou, para meu bem, o meu destacamento da DSM no verão de 1992, com um ano de comissão. Foi curta; mas do primeiro semestre na DSM retenho a equipa que chefiei na MDT1, que vi desaparecer, e por onde tantos ECN passaram antes. Nesse semestre fiquei a conhecer muito da realidade concreta dos navios e é com orgulho que recordo as palavras dum camarada, historiador já reformado: “és como o Castro : vens a bordo e ouves as pessoas.”
Também tive sorte na promoção a CTEN, porque os oficiais que me apreciaram no respectivo conselho concluíram que as más informações que tive na DSM diziam mais do informador do que do informado; de facto, o 1ºinformador foi ultrapassado na sua promoção; eu, não.
A mudança para o Gabinete de Estudos afigurava-se traumática, mas a sorte não faltou: voltei a ter o EngºLérias como chefe e trabalhei na garantia das lanchas “Argos”; pude familiarizar-me com as estruturas em fibra-de-vidro (uma fraqueza do MSc), com os procedimentos do Arsenal e civis, e com a gestão de projectos em Portugal (aprendendo pela negativa face ao estágio realizado na HDW).

Entretanto, fiz parte da missão de aquisição do RFA "Blue Rover" (depois, NRP "Bérrio") no Reino Unido. Para lá da sorte de ter participado numa actividade rara, a aquisição de um navio em segunda mão, no Reino Unido, com o qual tinha especiais afinidades, fui chefiado pelo CFR Martins de Bettencourt, com quem aprendi muito, pela positiva, sobre negociação.
Pouco depois, a sorte bafejou-me de novo, e fui nomeado coordenador do programa de aquisição das lanchas da classe “Calmaria”, construídas na Bazan-Cádiz. Ainda era 1TEN e já tinha a oportunidade de gerir um projecto, embora do lado do cliente, e num estaleiro conceituado. Foi um período de grande e profícua actividade, e realização pessoal, com o nascimento do meu filho em Espanha (1994), os seus dois primeiros anos de vida em Portugal , e a frequência do Curso Geral Naval de Guerra, em 1995. Não foi fácil gerir o programa e houve complicações inconcebíveis, como os hélices ficarem como esponjas ao fim de um ano, devido à má protecção catódica; ou os sistemas de comando e controlo dos jactos-de-água não funcionarem, por inadequação dos componentes; ou, ainda, as reiteradas avarias do alternador acoplado ao motor principal, inviabilizando o funcionamento dos equipamentos eléctricos a bordo, e que foram resolvidas com a instalação de geradores autónomos nas oito lanchas. Mas a Bazan cumpriu todos os seus deveres contratuais, porque o cliente sabia exactamente o que queria e o que o contrato lhe permitia (era um contrato claro; foi bem negociado), para o que era necessário estar seguro dos factos e do que se afirmava – as lições aprendidas davam os seus frutos.
Por esta ocasião, comecei a dar aulas no Instituto Superior Técnico (IST), na licenciatura em engenharia naval. Uma feliz coincidência fez com que, na sequência do encalhe do paquete “Queen Elizabeth” na aproximação a Nova Iorque, eu tivesse um aluno meu do IST a trabalhar em previsões de squat quando o Instituto Hidrográfico estava preocupado com o squat dos nossos navios; estabeleceu-se um projecto expedito de cooperação entre o IST e a Marinha (através da Direcção de Navios (DN), criada em 1994), sendo eu a ponte, do qual veio a resultar um conjunto de equações de previsão, que eu adaptei do trabalho do meu aluno, e que o IH veio a usar nas suas publicações. Um oficial do IH, em especial, aguardava com expectativa o relatório com as previsões de squat que eu devia elaborar; foi o meu primeiro contacto profissional com o CFR Medeiros Alves, que me marcou profundamente, desde logo pelo seu rigor e exigência. Esta coincidência só terá avançado a ocasião em que eu viria a trabalhar com este oficial – mas foi uma afortunada coincidência.
Participei também no processo de preparação do afundamento do “S.Miguel”; mas quis a sorte que eu não estivesse a bordo das fragatas enviadas para assistir ao afundamento. Não pela segurança física, mas sobretudo porque eu tinha consciência de como aquele processo tinha sido mal conduzido e, em diversos aspectos, mal executado; previ que a Marinha, com um mínimo de responsabilidade nos resultados, viria a “sair mal na fotografia” se eles fossem maus, como tudo sugeria que viessem a ser – disse de viva voz ao meu chefe à data, mas não escrevi, por falta de fundamentação objectiva; mas aprendi a lição de que, quando a coisa pública está em causa, devo escrever o que penso, com respeito e fundamentação; dá trabalho, mas é indispensável. Infelizmente, ganhei problemas: as palavras leva-as o vento; os escritos, ainda por cima se forem bem escritos, ficam, moem e geram anticorpos.
Pouco tempo depois, tendo coordenado a elaboração da especificação técnica das lanchas da classe “Centauro”, integrei a comissão de abertura das propostas e, mais tarde, fui nomeado perito técnico da comissão de análise das propostas. Como tinha já formação económico-contabilística, porque estava a frequentar um MBA, incluí na análise de engenharia uma análise jurídico-económica que mostrava que a participação em concursos públicos do Arsenal do Alfeite (que não se distinguia da pessoa colectiva Estado) era obviamente ilegal. O Arsenal tinha falta de dinheiro e penso que se pretendia usar as verbas do concurso, pagas no início do contrato, para aliviar essas dificuldades; tudo o que prejudicasse este objectivo não era bem-vindo – mas era de discutível legitimidade. Não me custou prever que o contrato iria trazer muitas dores de cabeça ao coordenador do projecto do lado do cliente: o Arsenal aplicava o dinheiro onde precisava e, como era seu hábito e é típico dos monopolistas, decidia o que fazer e como. Se eu fosse nomeado coordenador, muita gente tinha uma desculpa: quando algo corresse mal acusava-se o Paulo, pois “tem mau feitio” e “está contra o Arsenal”. Pouco antes, o meu chefe directo propôs um louvor que conduzia a condecoração, mas foi recusada. Percebi a mensagem: não importava o trabalho bem feito e de modo duradouro; não se podia era discutir situações pouco claras. Foi a primeira de três vezes que vi um louvor que conduzia a condecoração ser bloqueado acima do chefe que o propôs.
Como não tinha colocação alternativa, a situação em 1998 exigia uma análise cuidada e uma decisão de fundo: aguentar ou dar um salto no escuro. Eu sabia que aguentar, significava engolir toda a espécie de coisas repelentes (se fossem só sapos ou até elefantes...), sem a expectativa dum saldo positivo. Assim, requeri o fim da comissão na DN, pois o director não abdicava de me nomear coordenador do programa de aquisição das “Centauro”. Eu pensava (e ainda penso) que ele queria “arrumar-me” – “arrumar” por “arrumar”, preferi sair. Destaquei menos duma semana depois. Na despedida, ele exigiu-me, e creio que pela primeira vez a alguém, que lhe dissesse “determina mais alguma coisa”! Tinha que vergar-me de algum modo, e foi o que arranjou. Como ensina Kant, mas muita gente não percebe, “não somos livres de não ser livres”; podemos ter de suportar custos elevados, mas há coisas a que temos de dizer “não”.
Tive sorte em estar um mês e meio sem colocação, porque pude estudar para quatro exames do MBA que tive em Junho. Depois foi-me dada a possibilidade de ser colocado na 1ªDivisão do Estado-Maior da Armada, chefiada pelo CMG Lima Bacelar. Depois do difícil período recente na DN, a sorte sorriu-me de novo: voltei a ter um chefe de “mão cheia” e era uma colocação aliciante. Fui o primeiro ECN no EMA, e na Divisão de Pessoal e Organização, ligada aos meus interesses no direito e na gestão públicos, e com o desafio de elaborar publicações de Marinharia. Fui editor e co-autor das Publicações de Marinharia da Armada, promulgadas em 1999, com aplicação imediata na EN; foi-me atribuída a pasta do ensino superior militar e integrado na equipa que se ocupava da legislação do Arsenal. O acesso ao valiosíssimo acervo documental do EMA, além dos estudos e documentos internos que fiz, e com visitas à família só ao fim de semana, deram-me as condições para elaborar análises e sínteses pessoais nestas matérias, como a defesa da privatização do Arsenal, pela qual alguém me chegou a chamar traidor, e do fim das licenciaturas na EN, que divulguei nos Anais do Clube Militar Naval e na Revista Militar. A abertura à discussão e a consideração de alternativas no EMA foram bem maiores do que na DN, graças aos chefes da 1ªDivisão com quem servi, o CMG Lima Bacelar e o CMG Silva Carreira, mas também ao ambiente global, incluindo as conversas com o chefe da 4ª Divisão, o CMG Medeiros Alves, e sobretudo com os outros oficiais da 1ªDivisão, que era propício ao desenvolvimento. Além disto, ainda elaborei um estudo, que ofereci ao EMA, relativo ao Marketing na Marinha, como aplicação directa do MBA que fiz em dois anos e concluí em 2000. Certo é que, de novo, o meu chefe directo no EMA me louvou com vista a uma condecoração que foi superiormente recusada; e, como uma coisa não tem a ver com a outra, continuei a ter grande admiração profissional por quem a recusou.
A sorte cruzou-se comigo várias vezes em 2000, como quando o CALM Silva Santos me convidou para leccionar economia na EN. Nem a votação realizada por três oficiais do Departamento de Administração Naval (o coordenador recusou-se a participar) para não me aceitarem no Departamento demoveu o Comandante da EN e o chefe da classe, CALM AN Rodrigues Baptista. Durante cinco anos, leccionei Economia da Empresa, Cálculo Financeiro, Introdução à Gestão, Organização e outras, além de elaborar o relatório do concurso de admissão anual, organizar seminários sobre ética, e orientar memórias de fim de curso de alunos AN. Participei na formação de sete cursos de oficiais AN, e cinco das outras classes, e a boa relação que ainda hoje tenho com eles vale mais do que qualquer símbolo que possa ostentar – é intangível, mas marca e fica onde conta. Substituí um professor civil, pelo que o Estado teve menos despesas com docentes na EN, nos cinco anos que lá leccionei. E nenhum navio deixou de ser adquirido ou mantido por eu não estar na DN – tanto que quando lá cheguei em 2006, não havia cargo livre.
Aproveitei ainda a docência na EN para frequentar a pós-gradução de 2 anos em Estudos Europeus da Faculdade de Direito (Clássica), que concluí em 2003 com uma tese sobre o mercado único da defesa. As dificuldades de publicação de tema tão árido deram-me tempo para rever, aprofundar e actualizar a tese, e com o apoio do CMG António Silva Ribeiro acabei por contratar a publicação com a Prefácio em 2006. A nota da tese e o prefácio do Professor Ernâni Lopes dizem mais do que aqueles que criticaram o livro sem nada mais ler do que o título. O lançamento público realizou-se no Clube Militar Naval, numa sessão com palavras do editor, do Professor Ernâni Lopes e do CALM Silva Carreira e para a qual convidei todos os membros da Administração da Marinha (menos um: ele sabe quem é e porquê), a qual foi notada pela sua ausência; aqueles que me estimam estiveram presentes ou, se não puderam, saudaram-me antes.
Com esta pós-graduação (direito), o MBA (gestão pública) e o MSc (engenharia) reuni as condições de formação que entendo necessárias para exercer um cargo de dirigente no Estado. Surpreendeu-me que poucos tivessem percebido a coerência e fins da formação que me impus (em 1995), e concretizei.
Com uma carreira ecléctica e atípica, era inevitável – na cultura portuguesa – ir acumulando invejas e “amigos da onça”. E não é que fossem muitos, mas alguns estavam colocados onde podiam causar-me danos. Ainda assim, a sorte e aqueles que me apreciavam puderam impedir que eu fosse ultrapassado na promoção a CMG. O director de Pessoal mandou-me então para a DN, onde não havia cargo vago, nem eu desejava, e lá passei 18 meses, onde vivi a poucos metros de distância o drama da detenção de um oficial da Marinha por magistrados do Ministério Público e investigadores da Polícia Judiciária. Havia muito que me chocava a relação entre fornecedores (em particular, quando estavam em causa militares na reserva ou na reforma) e pessoal da DN; convivi com isso e só na terceira passagem por aquela casa escrevi uma posição clara sobre a matéria – que vim a aplicar na Direcção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM). Gostei muito de integrar o grupo de trabalho que geriu o processo de venda das fragatas “João Belo” ao Uruguai, sob a direcção lúcida e eficaz do CALM RES Rodrigues Cancela. Foi uma magnífica experiência, porque fizemos história, porque fizemos o que devia ser feito, e pela equipa; ainda hoje não entendo como há quem tenha achado má ideia vender estes navios – a menos que, de facto, não tenha gostado do pessoal da equipa.
Em 2007 a sorte voltou a bater-me à porta: o CALM Silva Carreira convidou-me, com o apoio do VALM Medeiros Alves, para prestar serviço na DGAM e em concreto no Serviço de Combate à Poluição do Mar por Hidrocarbonetos (SCPMH), onde estive três dos melhores anos da carreira. Era o primeiro ECN neste serviço e cargo, sem experiência anterior na matéria. Foi uma sorte ter conseguido afastar logo de início um elemento do SCPMH e ter tido “à mão” um sargento de “mão cheia” que o substituiu com vantagem. Mas sobretudo, tivemos muita sorte por, face ao tráfego diário nas costas portuguesas de centenas de navios com todo o tipo de cargas perigosas, não termos tido nenhum grave episódio de poluição do mar. O SCPMH é um serviço muito dinâmico, e a visibilidade externa é muito superior à interna, sendo também mais apreciado externamente do que no interior da Marinha. Tive ainda a sorte de frequentar em 2008 um curso de três meses sobre segurança e relações internacionais no George Marshall Center, uma bela oportunidade para estudar estas matérias, durante o qual elaborei um artigo, que desenvolveu a investigação divulgada no meu livro, e que publiquei em inglês, com o patrocínio do GMC.
Esta passagem pela Autoridade Marítima exigiu-me que conhecesse o seu enquadramento e a dinâmica de equilíbrio de poderes em que está envolvida. Com o tempo cresceu o meu desgosto com a forma como, a meu ver, a Marinha desvaloriza este serviço e a Autoridade Marítima; e penso que contribui para explicar a ascensão da componente marítima da GNR.
“CRASH-STOP”
Eu conto, oralmente, toda a história relativa à minha saída e envio os documentos relevantes a quem o quiser. Um dia contarei por escrito; aqui e agora, fica só um resumo suficiente para se entender o essencial. Contar mais agora só ia irritar os envolvidos, que poderiam fazer ainda mais alguma coisa “a quente” e danosa para a Marinha.
Um belo dia, em Junho de 2010, tomei contacto directo com um conjunto de irregularidades ocorridas numa certa unidade da Marinha. Achei-as surreais à data, e pensei que as chamadas de atenção locais e as férias fariam os responsáveis pelas situações em causa reconsiderar e corrigi-las, em paz. Mas não; a divulgação informal bem colocada não teve efeitos. Em Outubro, houve que formalizar o desagrado com uma reclamação de uma interessada, e com um email que enviei ao responsável directo pela situação, e a destinatários ocultos com ligações ao tema; não foi para “meia-Marinha”, como se disse, mas uma das afectadas podia ter contado a história a “meio-País” pelos media – sendo aquela unidade e naquela data, a divulgação pública teria, por certo, causado danos à posição pública da Administração.
Com 30 anos de Marinha e anos a estudar organizações previ que a Administração se uniria face a uma ameaça; faltava saber o que era a ameaça para a Administração: a denúncia ou as irregularidades? Se a denúncia fosse considerada ameaça seria a clássica “punição do mensageiro” e eu passaria à reserva de imediato. Expliquei esta análise e a minha linha de acção ao único dos destinatários ocultos daquele email que me procurou de imediato para entender o problema. E executei, com a entrega da declaração em 10 de Novembro, no dia após ter sido informado de que seria alvo de um processo de averiguações por causa do dito email (havia, constou-me, vontade de punir); o processo foi arquivado, e sublinho que foi instruído por um oficial acima de qualquer suspeita, auxiliado por um escrivão que é jurista e despachado por outro jurista. A sorte ajudou-me, pois com vontade de me punir e, sem estes juristas, creio que teria sido punido ainda que sem fundamentação legal; não tenho a certeza – e ainda bem!
Disse-se que fui inábil e que actuei “a quente”. Certo é que os emails (houve mais) foram a única forma de corrigir as irregularidades e as dualidades: só com eles se iniciou e se concluiu a acção correctiva das irregularidades. Creio que quem as cometeu não foi sujeito a nenhum processo; nem preciso comentar. Quanto à reclamante, depois de tantas pressões e condutas inaceitáveis, decidiu deixar a Marinha, com a qual teve uma avença durante dez anos; com a sua saída perderam-se valências, perdeu a unidade em causa e perdeu o pessoal da Marinha. Ela tinha razão, e por isso reconheceram todas as pretensões dela. Mas foi oralmente; não foi notificada do despacho sobre a reclamação (qualificada como “um choradinho de queixinhas”) e nem se sabe se o teve...
Disse muitas vezes que as minhas ambições de carreira se esgotavam em CMG; tudo o mais, a ocorrer, era bónus. Não busco títulos; não tenho mulher que sonhe com títulos nem com mordomias; não tenho que completar a carreira do meu pai; nem tenho que cumprir desejos da minha mãe; e por aí fora. Dava jeito o aumento de remuneração, mas não vivo mal. E não vejo nenhum bem superior em causa que me obrigue a abdicar de valores que muito prezo, como o respeito pelo Estado de Direito Democrático. Por isso, parar a carreira por aqui, até pode ser bom, porque tenho boa idade para mudar de vida. Lamento ter havido uma lateral casualty, que foi o SCPMH/DGAM, onde estava bem, com um trabalho desafiante e que julgo ter sido útil a Portugal.
Ao rever esta história, surreal e muito triste, continuamos a interrogar-nos:
Que se pretendia? Era preciso ser assim? Alguém aprendeu alguma coisa com isto?
Esta situação revelou algo mais: de novo, um chefe louvou-me com vista a uma condecoração e não foi superiormente aceite. Quem me conhece, sabe que nunca me movi por medalhas; acho-as bonitas e ficam bem a alguns. Sei que há uma legítima margem de subjectividade na sua atribuição. Mas o louvor referiu-se à comissão de três anos na DGAM, sobre a qual um avaliador salientou as “conduta e ética irrepreensíveis”; o processo de averiguações sobre os emails de que a Administração não gostou foi arquivado, e era alheio à comissão na DGAM; não houve razão objectiva para o louvor não seguir. A razão é subjectiva: violei as regras não-escritas, da cultura da Marinha. O custo de atribuir uma medalha é baixo para quem decide; a atribuição reflecte só a avaliação de benefícios extraídos do acto; isto é, o acto que fica revelou que o benefício foi a recusa: tendo-se concluído que não foram cometidos ilícitos e que a comissão foi boa, a apreciação subjectiva e indirecta, isto é, da imagem da pessoa “na casa” é que ditou a recusa – foi a sanção pela violação das regras não-escritas. Tendo já visto recusadas duas condecorações, é claro que a minha imagem não é boa no correspondente nível de decisão, que é o da gestão da cultura da Marinha, onde a memória é longa. Assim, se não fosse aquele email, outra razão se encontraria para me travar a progressão da carreira, pois a Administração não me via como “vestindo a sua camisola”; tem legitimidade para o fazer e tem substantivamente razão. Integrado na Administração eu só poderia ser um agente de mudança – ou um perturbador! Consciente disso, e porque não me via a “mendigar” por benesses, nem queria ser director de Navios (o único cargo para CALM ECN) e ainda menos subdirector, sair era bom para mim e para a Administração. Com a magnífica carreira que tive, não me custou nada.
UM BALANÇO SUAVE
Uma pessoa diz muito de si, pelos custos que incorre ao aplicar os seus princípios. Ao longo de 30 anos constatei que, na Marinha como no país (nem me refiro a políticos), demasiadas vezes se diz uma coisa e se faz outra: declaram-se princípios elevados e depois cede-se ante benefícios pessoais; criticam-se os políticos e o Exército, e faz-se o mesmo às “classes auxiliares”; é-se duro para baixo e subserviente para cima; faz-se disto e depois pretende-se dar lições de moral aos outros; e por aí fora. Quanto mais subi na carreira mais vi, e mais me incomodou, esta dualidade, bem portuguesa; é uma das coisas com que mais me custa conviver e que tolero cada vez menos, porque é uma grave debilidade ética.
Apesar de tudo, tenho razões para concordar com o lema dos Fuzileiros: “a sorte protege os audazes”. Ao longo destes 30 anos, bati-me pelos princípios que me guiavam, às vezes assumindo grandes riscos e custos (medidos), remando contra a maré, e sendo por vezes acusado de actuar por “necessidade de afirmação” ou a “quente”. Guiei-me pelo juramento de bandeira, que nunca esqueci, assumi os custos daquilo que defendi, e senti-me em minoria, mas nunca sozinho.
Diz-se depreciativamente que “fiz o que quis”, o que é largamente verdade e só me espanta que isso cause despeito. De facto, não fiz só o que quis, fiz sempre o que me mandaram – nunca fui acusado de desobediência – e fui sempre movimentado com guias mecanográficas. Sobre os conteúdos, o tempo e aqueles com quem trabalhei avaliarão o que fiz. Mas percebo que quem não queira “fazer ondas”, quem se governe apenas pela sua agenda pessoal, quem tenha uma visão paroquial do mundo, quem não goste de ser contrariado, quem seja sebastianista, não aprecie posições convictas e fundamentadas. Orgulho-me de ter convivido muito bem com todos os profissionais sérios com que me cruzei – e até com a maioria dos restantes. E orgulho-me de quase tudo o que fiz, dos alunos que leccionei e orientei, dos projectos que coordenei, das operações que dirigi, dos escritos que ficam, das palavras que alguém não esquece – tudo isso, fica e está à vista, assim se queira e saiba ver. Gostei e gosto da Marinha, mas procurei acima de tudo melhorar Portugal.

APROA AO MAR: GOVERNA ASSIM !

Em 30-Dez-2010, passei à Reserva, e fiquei fora da efectividade de serviço. E encerrei, como capitão-de-mar-e-guerra, a minha carreira de 27 anos como oficial da Marinha.
Por vezes, foi rijo, mas foi globalmente bom e gostei. Agora, acabou.
É tempo de iniciar outra tirada e de mudar de rumo.
Como sempre, mantenho a vontade de seguir de proa ao mar, e aguentar a surriada que vier.
Este blog foi criado para divulgar reflexões pessoais sobre matérias diversas, que interessam aos cidadãos (mesmo que só a alguns) e onde penso poder dar um contributo relevante. E, claro, sujeitá-las aos comentários alheios; se forem construtivos, tanto melhor.
Apesar de trazer custos na realidade, não custa dizer no conforto de uma secretária:
Venha mar!