domingo, 14 de agosto de 2011

Privatizar a água?

Fala-se por aí na “privatização da água”. Não há debate; há monólogos e confusão.
PPC defendeu a privatização de empresas do grupo Águas de Portugal na campanha eleitoral. E muita gente concluiu daí que se vai “privatizar a água”. Muitas pessoas têm reagido com horror à ideia; outras opõem-se, invocando tratar-se de um sector estratégico, uma questão de saúde pública, um “bem essencial”, etc. Avançam-se ideias vagas, em geral um “statement” – e tenta-se muitas vezes sugerir que o interlocutor que pede o desenvolvimento da argumentação é que deve ter vindo de Marte, porque … “é óbvio”. Mas não é óbvio!
Claro que podem avançar-se “statements” por preconceitos (incluindo abordagens dominadas pelas emoções, como receios que se sentem mas não se conseguem explicar) ou até por não se saber como defender a tese em pormenor.
É preciso explicar a argumentação a favor da privatização daquelas empresas. Pode persuadir quem está aberto ao diálogo e é um dever, porque trata-se de mudar algo, o que acarreta esse dever (há aqui uma dualidade bem conhecida: para baixar preços para os consumos da classe média, ninguém pede explicações, mesmo que isso acarrete aumentos maiores no futuro… basta citar as SCUT e as portagens como exemplo).
A primeira coisa a notar é que a água não vai ser privatizada – ela já é privada: a água que se recebe em casa, a água que se bebe, a água com que alguns regam jardins e enchem piscinas, toda ela é usada por uns e ao usarem-na ela não está disponível para ser usada por outros (depois de escoada ou tratada, talvez, mas não no momento em que é usada); nas piscinas, onde várias pessoas podem usufruir em simultâneo, o acesso é controlado (dispenso-me de dar exemplos, por me parecer evidente). Também a água que se compra já engarrafada está nas mesmas condições. A isto chama-se “bem privado”. Em praias de mar e fluviais está-se perante água que é directamente usada enquanto bem colectivo, e é um caso especial.
O que está em causa é a privatização de empresas (ou de alguns SMAS) que tratam de captar e distribuir água aos consumidores intermédios e finais; vai continuar-se a pagar a água que se recebe “pelo cano” e a água engarrafada (captada e distribuída por privados); a única mudança é que a água que chega às torneiras e que se usa para beber, para lavar, para regar jardins e encher piscinas passará a ser captada e distribuída por empresas privadas (privatizadas).
O economista Paul Samuelson (tão apreciado pela esquerda) mostrou em 1954 qual é o critério económico para decidir quais as funções de que se deve ocupar um estado. E é na economia que faz sentido procurar o critério para esta decisão, pois é a ciência que se ocupa da afectação de recursos e que procura as soluções mais eficientes para esse problema.
Podem escolher-se outros critérios, como os relativos ao poder (político); mas essa escolha não privilegia a eficiência, pelo que virá a constatar-se que se estão a gastar mais recursos do que se poderia para realizar um mesmo objectivo. A experiência mostra que, mais tarde ou mais cedo, a maioria das pessoas vem a concluir que é um desperdício e prefere soluções eficientes; isto é, a política não pode ignorar a economia. Perante ameaças à integridade ou autonomia do colectivo, os seus membros podem aceitar algum desperdício em nome de outro valor maior; porém, não terá de ser assim, porque as situações de grave ameaça também exigem a melhor aplicação de todos os recursos disponíveis.
Já noutro texto sobre privatizações expliquei que os bens públicos têm as propriedades de não-rivalidade (o consumo por um não impede nem reduz o consumo por outros) e de não-exclusão (não é possível excluir do consumo quem não pague). Os bens que não satisfazem ambas as propriedades são bens privados, como é o caso da água, o pão ou os medicamentos.
É essencial não confundir bens públicos (que satisfazem aquelas propriedades) com bens do domínio público, que são bens que estão na propriedade do Estado. Assim, um navio de guerra é um bem do domínio público, tal como os carros de polícia ou os prédios do Estado. Integram ainda o domínio público o subsolo, as águas, e uma faixa adjacente ao mar, entre outros. É só antes de captada que a água é um bem do domínio público (mas raramente um bem público). A lei regula os usos possíveis das águas (recursos hídricos); assim, a captação de águas, seja para distribuição a granel seja para engarrafar, é sujeita a licença ou a concessão; mas a Lei da Água, em sintonia com a CRP, e bem, não veda esta actividade aos privados.
Vejamos então alguns argumentos de oposição à “privatização das águas”, como lhe chamam.
1 – A água é estratégica. Claro que é, mas apenas quando a integridade e a autonomia do país estão ameaçadas por um conflito, que é o que significa o termo “estratégico”; nesse sentido, e se Portugal estiver nessa situação, pode sempre recorrer-se à requisição civil (de privados) no âmbito duma mobilização nacional, e os fins privados das empresas passam a ter de obedecer aos órgãos legítimos do poder político. Mas é um caso excepcional e raríssimo.
Além disso, há muitos outros recursos que são estratégicos, no sentido original do termo, e que são processados por empresas privadas; o mais destacado são os combustíveis: sem eles não há indústria a funcionar, os meios operacionais e o esforço de defesa param.
Um exemplo de que não é a posse pública que garante que o país é bem servido por isso é o dos espiões traidores, que tantas vezes são seduzidos por dinheiro por estrangeiros; ao menos no sector privado essa tentação é transparente e é mais fácil de a detectar e controlar.
2 – A água é estratégica, na medida que hoje também se usa este termo para dizer que é um recurso ”crítico” ou “crucial”, ou “bem essencial”. É, mas há mais recursos cruciais ou essenciais para as actividades de um país, como os combustíveis, os alimentos ou as vacinas. Já passou o tempo das teses marxistas-leninistas da “apropriação colectiva dos meios de produção”, que causaram o colapso do bem-estar geral e de diversos países (e tanto mal fez cá). A nossa economia, até porque estamos na União Europeia, tem como matriz o mercado livre; nesse contexto, a importância de um recurso só determina até que ponto e em que termos o Estado o regula, visando servir os interesses dos cidadãos.
3 – A água é um problema de saúde pública, por ser vulnerável à sabotagem. É, e não entendo como o título de propriedade altere isso; no essencial está em causa uma questão de segurança –que é, aliás, impossível sobre 100% dos águas a granel e engarrafadas– logo, uma questão de polícia. Mas há muitos outros recursos que podem causar problemas de saúde pública, como a sabotagem de vacinas ou de alimentos com agentes infecciosos, e já se percebeu que não é a propriedade dos fabricantes e distribuidores dos alimentos ou das vacinas que altera os riscos; aos públicos e privados exigem-se, e fiscalizam-se, adequados níveis de segurança interna nas suas actividades; há exemplos de falhas em ambos os sectores.
4 – Os preços vão aumentar e a qualidade diminuir. Pode acontecer, mas menos do que se crê, pois preços altos e qualidade baixa reduzem a procura e as receitas, e as empresas precisam delas para sobreviver; portanto, têm de melhorar; e se não forem rápidas a satisfazer a procura são reguladas para o fazer, sob pena de perderem a concessão. Além disso, a concorrência na água para beber pode tornar a engarrafada mais competitiva e substitui-la em parte. Todavia, a água engarrafada não concorre com a “água da torneira” para regar jardins ou encher piscinas, e o aumento para quem usa água para estes fins pode ser fonte de contestação, sob a capa do “bem essencial”.
Haverá mais “statements” que se reconduzem aos que discuti acima. Aguardo por argumentos que permitam um debate construtivo, do qual possam sair conclusões sólidas. Pelo meu lado, dei o meu contributo construtivo, livre de emoções e preconceitos.

domingo, 7 de agosto de 2011

CONTRAPARTIDAS

Ouvi ontem na SIC o MDN, Aguiar Branco, afirmar que ia acabar a política das contrapartidas.
Concordo.
Há mais de dez anos que me oponho às contrapartidas, e tenho dado a cara em vários textos sobre o assunto nesse período. Portanto, é com alegria que vejo ser tomada uma decisão que é vantajosa para o Estado e para o país, ainda que haja interessados que perdem com o seu fim, por exemplo os que usavam as contrapartidas como o instrumento mediático para compensar, aos olhos das opiniões públicas e publicadas, as aquisições de equipamento para as Forças Armadas. Agora vão ter de ser claros nas explicações - mas como não se antevêem aquisições muito visíveis para breve, há tempo para os envolvidos se adaptarem a um regime saudável.
Aprecio especialmente o fim da falta de transparência e "negociatas" que eram tudo menos claras, à conta das contrapartidas, e que eram consequência directa da natureza absurda do conceito e da política.
Aliás, o que espanta mesmo é que esta política tenha durado tanto, quando - desde que se pense um bocadinho no assunto, ou não se beneficie dela - facilmente se percebe que é uma política absurda e condenada à partida ao fracasso; na melhor das hipóteses só serve alguns interesses de duvidosa legitimidade.
Entretanto, o ministro Aguiar Branco disse que se iam cumprir os contratos em vigor. Parece-me improvável: os fornecedores que sabem desta decisão antecipam a improbabilidade de serem punidos por não cumprirem os contratos, pelo que o mais provável é a política de contrapartidas ter acabado ontem.
Nunca devia ter começado.
Demorou a acabar.
Mas mais vale tarde do que nunca!