domingo, 15 de julho de 2012

Cortes dos Subsídios

Apesar de haver canais de notícias de 24 horas e noticiários de uma hora nas TV, há pouco importante para contar; os media servem poucas notícias e muito entretenimento, é isto que tem mais procura – a maioria das pessoas não procura nos media fatos nem oportunidades de reflexão, mas “a baixa da gasolina” e a confirmação das suas posições; coisas que não exigem grande esforço a pensar e que não suscitam dilemas. Para refletir, e com fraca procura, há (alguns) programas de debate e artigos de opinião nos jornais. Portanto, os media “trabalham” os fatos para servir a procura. Nada disto é novidade; é apenas um enquadramento a ter presente, e que explica este longo intervalo das minhas reflexões – sendo certo que as tenho partilhado noutros meios também.
Mas o Acórdão do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade do corte dos subsídios de férias e de Natal no setor público é um desses raros fatos importantes, de grande alcance, e que merece reflexão. Ofereço agora a minha, depois de ter lido e ouvido políticos, juristas, comentadores e jornalistas expor as suas interpretações.

Em primeiro lugar, a decisão do TC é para ser compreendida e respeitada. É essencial para a saúde do Estado de Direito que se respeite a CRP e as decisões dos órgãos de soberania. Eu discordo da decisão, e da fundamentação, mas defendo que deve ser aplicada no espírito e na letra. Tem de haver um “fim da linha” para resolver disputas, e é assim que se deve entender a decisão; prolongar a disputa contraria a tolerância democrática. 

Segundo, sem fazer uma discussão pormenorizada do Acórdão, concluí da sua leitura que tem pouco conteúdo jurídico e muito conteúdo político e até ideológico. É até incontornável ver nalgumas passagens, reforçadas em declarações de voto, posições de débil base jurídica sobre a política-económica e financeira, que é competência de outros órgãos de soberania. 

Terceiro, a equidade não pode ser o valor mais elevado perante uma crise existencial – um país que perdeu uma guerra, como bem diz João Salgueiro – e já o defendi (http://proa-ao-mar.blogspot.pt/2011/10/equidade-nao-e-preciso-investimento-e.html): é muitíssimo subjetivo avaliar o sacrifício de cada um e fazer comparações; o TC pode decidir institucionalmente sobre a subjetividade, dando razão a uns contra outros, mas não resolve o problema de fundo.
O que é essencial, agora, em tempos extraordinários, é cumprir aquilo que o Governo legítimo de Portugal se comprometeu em 2011 a realizar com os financiadores externos, para assegurar que os setores público e privado voltam a poder pedir empréstimos no exterior para financiar as suas atividades. Cabe sempre recordar que sem esses empréstimos, o Estado teria interrompido no todo ou em parte os seus pagamentos a fornecedores, servidores do Estado e pensionistas; isso é de um grau de sofrimento social muito superior a uma recessão de 3% do PIB. É fácil para alguns criticar, porque não houve corte de pagamentos – e criticariam se tivesse ocorrido, porque é fácil "estar no contra". 

Quarto, o Acórdão do TC centra-se no conceito de igualdade proporcional, e faz juízos de valor sobre o “limite dos sacrifícios”, que considera ter sido excedido com este corte, apesar de o país estar a viver uma situação crítica. O TC aceita que a igualdade só faz sentido com um sentido da proporcionalidade (portanto, não há igualdade…), violada com estes cortes. Mas depois diz que pode vigorar no ano de 2012, pelas dificuldades que causaria a aplicação imediata da decisão. Claro que a questão que surge logo é: mas se a medida é tolerável em 2012, e se a situação é crítica durante a vigência do Programa de Ajustamento Económico-Financeiro (2011-2014), porque não mantê-la até ao fim do PAEF no 1ºsemestre de 2014?
Ou, se é inconstitucional, e se há limites para a desigualdade, com base na proporcionalidade, e se decide que foram violados, como se tolera sequer que a medida tenha efeitos em 2012? Se há valores superiores à desigualdade, porque não prevalecem?
Ou, ainda, como se pode invocar a existência de limites para a desigualdade, com base na proporcionalidade, e depois não se especificam esses limites, dizendo apenas que 14,3% já é demais? Seria o corte de apenas um subsídio uma desigualdade proporcional? E o corte de um subsídio e 50% do outro? Onde está a fronteira?
Parece-me claro que este ponto não tem sustentação lógico-dedutiva, nem jurídica, e que o raciocínio é ideológico e até político (no sentido de refletir uma preocupação sobre a condução das decisões e ações da governação). De fato, não sei de alguém que se reveja na fundamentação e na decisão por inteiro.
Em alternativa, ou em complemento, os juízes do TC poderão ter pensado como servidores do Estado, a quem foram cortados os ditos subsídios, e não como personalidades independentes. É uma hipótese que se pode considerar no plano académico, mas que não me leva a defender o desrespeito pelo Acórdão. 

Quinto, sou servidor do Estado e defendo que os cortes dos subsídios são constitucionais (como já o foi, e aceite como tal pelo TC em 2011, o corte das remunerações mensais dos servidores do Estado). Para mim, abstraindo dos interesses pessoais, é óbvio: a bancarrota do Estado é um problema do Estado em primeiro lugar, porque a “máquina” do Estado também usufruiu do abuso de endividamento externo.
No essencial, defendo que crises existenciais exigem medidas extremas (rápidas e eficazes), e costumo dar o exemplo da quimioterapia: causa sofrimento e danos gravíssimos ao corpo, mas é a única garantia que o doente tem de não morrer da doença. Curas milagrosas não há!
Sendo o primeiro dever do Estado garantir a sua sobrevivência e autonomia, e estando o PAEF bem delimitado nas metas e prazos de realização, entendo que essa é a fundamentação jurídica mais sólida para avaliar a constitucionalidade dos cortes. É simples e conciso; não usa juízos qualitativos, subjetivos, ideológicos ou contamináveis pelos interesses próprios de quem julga.
E oferecia uma delimitação clara ao Governo: os subsídios teriam de regressar no 2º semestre de 2014; podia haver uma reforma das remunerações dos servidores do Estado e pensionistas, mas teria de se partir da base da remuneração total anual (14 x remuneração mensal). 

Uma nota curta sobre a questão mais mediática, mas também importante, do momento: a licenciatura de Miguel Relvas. É consensual que não houve ilegalidade e que a controvérsia não se inseriu no exercício de funções políticas, nem se acusa o ministro Relvas de usar o título para fins ilícitos. É consensual que foi uma forma ligeira e privilegiada de obter um título académico, e muitos ligam isso às exigências de rigor e esforço que o Governo defende.
Este ponto revela a, digamos, insinceridade dos comentadores. As exigências de rigor valem mais do que quem as defende; fazer valer as exigências de quem as defende é uma forma hábil de fugir ao rigor e ao esforço. Que se conjuga bem com a “chico-esperteza” tão comum (que se revela em privado, mas se nega em público), que consiste em desejar também conseguir obter aquele “tesourinho”. Por exemplo, as pressões sobre professores para que os filhos passem sem saberem, ou os milhares de portugueses que tentam“esquemas” para entrar ou meter os filhos no Estado (pelo emprego para toda a vida). É isso que é importante neste caso: muitos pensam espiar e disfarçar a sua inveja e fracassos apedrejando Relvas.