quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Preocupações


Por estes dias, em relação à situação do país, preocupam-me duas coisas em especial: a intolerância à solta; e a inclinação de tantos para não corrigir, e até repetir, os erros que nos trouxeram à bancarrota.
 
A intolerância revela-se pela incapacidade de discutir sem adjetivar ou sem cair no insulto pessoal, ridicularizando e até diabolizando os que pensam de modo diferente. A ideia de que quem “não pensa como eu/nós” só pode ter más intenções, ou estar conluiado mais ou menos conscientemente com malfeitores é um perigoso sinal. Confrontados os intolerantes com estas análises, a sua conduta vem a confirmá-las, insistindo em que “a realidade” o prova – e tantas vezes são os mesmos que rejeitam a ideia de que “não há alternativa” à austeridade... Não se limitam a admitir que têm uma visão, entre várias possíveis, do mundo; sentem-se autorizados a classificar moralmente outras visões e considerá-las mal-intencionadas. Todos emitimos juízos de natureza moral; mas é perigoso, porque abre um caminho, que, por exemplo, a Inquisição deixou gravado na História, por se concluir “na fogueira”. A criação do Estado de direito visou também remover a carga moral das discussões políticas, e a decisão pelo uso da força.
Há muitas pessoas nas esquerdas com esta conduta. Isso ficou bem patente, por exemplo, a propósito dumas declarações de Isabel Jonet em Dez-2012, e após a morte de António Borges, há dias.
Mas também há pessoas assim na direita nacionalista e não-democrática em geral. Têm menos expressão mediática do que as esquerdas, mas manifestaram-se a propósito da morte de Saramago e encontram-se nos blogues e nas redes sociais.
A reforma dos colégios militares conseguiu combinar intolerantes de ambos os lados, embora no caso das esquerdas talvez se trate de aproveitar mais uma “arma de arremesso” contra o Governo; se não for isso, só o corporativismo pode explicar a crítica das esquerdas a uma reforma que reduz desigualdades e subsídios públicos a quem não é desfavorecido (claro que o melhor era acabar de todo com eles).
Felizmente há muitas pessoas de esquerda e de direita com quem se pode ter um diálogo, que não acham o mundo digital, que aceitam diferentes visões do mundo, e até aceitam ser convencidas de teses alheias. Com estas aprende-se e enriquece-se, porque têm algo a acrescentar ao debate, e acrescentam.
 
Em qualquer caso, não estou a sugerir, de modo nenhum, que a intolerância ou posições intolerantes devam ser proibidas ou de algum modo vedadas. A liberdade de expressão deve prevalecer, até porque a sociedade moderna pode conviver com este tipo de intolerância; esta tem longa tradição entre nós, mas será mais superficial do que parece e também refletirá as circunstâncias da contração do Estado. Muita desta intolerância é retórica e construída para realizar previsões de turbulência e subversão sociais; como o tempo passa sem essas previsões se concretizarem (assim como as de que a austeridade ia matar a economia), e o que surge são sinais de sucesso do ajustamento, cresce o desespero e o esforço (cada vez mais duro e inglório) para as realizar…
 
A eventual repetição das asneiras revela-se a respeito da reforma do Estado. Parece-me clara a razão de só agora se estarem a efetuar cortes duradouros nas despesas de pessoal e pensões. Primeiro, porque os cortes duradouros obrigam as pessoas a mudar de vida; as pessoas gostam de mudar, mas não gostam de ser obrigadas a isso. No Estado, é hábito encarar os cortes como coisa temporária: os servidores do Estado conheciam a contenção real, depois a nominal, e sabiam que mais tarde ou mais cedo um governo aumentaria salários ou avançaria com os “pet-projects” que estavam em “banho-maria”. Os atuais cortes nominais podem conseguir alterar a cultura interna do Estado. Segundo, porque uma reforma que demore anos a planear dá mais oportunidades aos que perdem com ela para encontrarem meios de a “torpedear”; quando ouço alguém a dizer que “faltam estudos” para realizar uma reforma fico logo desconfiado que o que falta é tempo para algum interesse sectorial a desvirtuar. Terceiro, é claro que sem a troika, Portugal estaria na bancarrota; mas ninguém quer perder os benefícios que recebe do Estado – e ao mesmo tempo quer pagar menos impostos!... – o que atrasa as reformas.
Tocou-se, portanto, no “ponto sensível” de todos. Daí que eu tenha muitas dúvidas que tratar logo em 2011 de reduzir pessoal e pensões (os aspetos da reforma do Estado agora em causa) só ia conseguir “envenenar” o ambiente político, o que me parece que inviabilizaria o Acordo de Concertação Social alcançado. Basta ver o que está a custar a Paulo Portas elaborar e divulgar o “guião da reforma do Estado”. É fácil dizer o que se devia ter feito em 2011, pois não há maneira de saber como teria sido. E também não se pode provar que não haveria Acordo de Concertação Social – mas se ele já foi difícil então, é razoável supor que seria inviável agora com todos os parceiros sociais contra o Governo.
Mas enquanto, coletivamente, não estivermos decididos a reduzir as despesas do Estado, não vamos reduzir o défice (porque todos queremos pagar menos impostos). E se não reduzirmos o défice, podemos precisar de mais apoio externo (segundo resgate). Se não fosse a terrível humilhação internacional e a dureza do que ele exigirá, o novo resgate era sedutor, pois pode ser a única forma de mostrar com clareza aos que não querem perceber que há que cortar despesas públicas. O problema maior é que os que não querem ver são os que passam com pouco sofrimento por tal situação; porque os que mais sofrem não formam lobbys nem têm capacidade de fazer pressão nos media.
A maior preocupação vem da conduta dos dirigentes do PS, que dão sinais consistentes de oposição aos cortes a realizar, e de vontade de inverter os cortes já realizados, nas despesas públicas. É o discurso usual para ganhar eleições em Portugal (estamos em período eleitoral). Mas era desejável que os portugueses tivessem coletivamente aprendido que foi essa conduta, com êxito eleitoral (prometer aumento de despesas com o dinheiro dos contribuintes), que nos sobre-endividou e trouxe à bancarrota; e que nos vai manter a ela “encostados” se não reduzirmos depressa o défice público. Claro que para não reduzir despesas e evitar enfrentar lobbys (pois opor-se-lhes tem relevantes custos mediáticos e de popularidade), o PS fala sempre em crescimento, coisa que quase não conseguiu de 2005 a 2011; aliás, só em 3 trimestres se superou o recente aumento de 1,1% do PIB. Esta conduta faz prever que o PS, para conseguir voltar ao Governo, voltará a prometer tudo e o seu contrário aos eleitores com o dinheiro dos contribuintes. E não sei se os portugueses não vão deixar-se seduzir pelos discursos bem-sonantes, como tradicionalmente fizeram antes. Que os dirigentes do PS, ofuscados pelas pressões eleitorais, sejam incapazes de perceber a mudança necessária não surpreende. Mas que tantos portugueses, que estão a pagar e a sofrer os exageros, não percebam e não exijam mais seriedade aos partidos do arco da governação custa a entender; porque se não o fizerem, dentro de poucos anos o país pode voltar de novo à bancarrota, e já se sabe quem mais vai sofrer com ela – os que não têm voz nos media para protestar.
Esta crise é uma oportunidade para as elites portuguesas* revelarem um papel de liderança. Porém, se considerarmos as posições públicas das elites condensadas em torno da reforma dos colégios militares, que podiam dar o exemplo de redução de despesas públicas (até porque não são desfavorecidos, em geral) e que não desistem de depender do Estado, fica uma sensação de “orquestra do Titanic”.
Penso que a nossa única esperança é que a União Europeia trave os desvarios despesistas antes de eles serem graves. Mas, a avaliar pela falta de fiscalização do passado e pela tendência de tentar qualquer coisa que pareça não ter custos, duvido da eficácia desse mecanismo e temo que mais facilmente emerja um consenso nacional para deixar o Euro do que para equilibrar as contas públicas.
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* Definidas num sentido descritivo (dirigentes e titulares de posições de topo no Estado e nas demais organizações, incluindo empresas) e não normativo (os melhores), porque raramente coincidirão.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Distorção Mediática


Como dizia no meu último post, os media dão eco a tudo o que pareça justificar que se deve acabar com a austeridade; tudo o que justifique a necessidade ou os bons resultados da austeridade dá-se nota breve e não se repete. Terão medo que se torne viral?

E ao mesmo tempo que os media pressionam pelo fim da austeridade, apontam a subida da dívida pública como uma falha do Governo (que é consequência directa do “mais tempo e mais dinheiro” que andaram a “pregar” mas de que já se esqueceram), sugerindo que a solução é o crescimento económico, porque dispensa os dolorosos cortes na despesa. Os media adoram as teses rápidas e simples (simplistas). É assim que moldam as imagens de alguns políticos, que depois “levam ao colo” (ver Sócrates, António Costa e Pires de Lima); mas também é assim que destroem os que têm ilusões de manipular os media. Porém, a superficialidade – bem ao gosto de demasiados cidadãos, que querem “esperança” e depois se queixam de serem manipulados ou enganados – pouco tem a ver com a substância das coisas.

Vejamos alguns exemplos representativos.
Estivemos mais de 10 anos com crescimento anémico, com o IVA da restauração baixo e com bom consumo interno. Por que razão o resultado será melhor se voltarmos ao modelo anterior? A baixa das taxas dos impostos aumenta imediatamente o défice, sem se saber se, e quando, o consumo cresce e produz mais receitas em volume do que a perda por baixa das taxas. Mas como uma deve subir e a outra descer, há quem ache que são iguais e se compensam, logo. E se correr mal, podem sempre criticar o governo por ter falhado…
Além disso, o aumento do consumo interno vai aumentar as importações, sem aumentar as exportações, e desequilibrar a balança externa; e voltamos ao endividamento externo. Mas ele não se “vê”, pelo que os media pretendem que não é um “problema das pessoas”… Será que o vírus da gripe é um “problema das pessoas”?…
 
A promoção de políticos pelos media é outro caso relevante. Por exemplo, Pires de Lima é tido como uma excelente escolha para ministro da economia por ser um bom gestor. Um ministro concebe, dirige e controla políticas públicas, o que exige um conhecimento profundo do Estado; um ministro da economia precisa de perceber bem como o Estado actua, e como deve actuar, na economia – mas os gestores de empresas raramente percebem a natureza e funcionamento do Estado e tendem a desprezá-lo. Paulo Macedo foi uma boa excepção. Veremos se há mais. Mas não custará a alguns media exaltarem as más notícias por mais alguns meses, para que pareça credível que foi um ou outro ministro a conseguir o fim da recessão.
 
Outro caso é a ideia de que Portugal fica melhor fora do Euro. Nem quem defende a saída, a defende para já. Nos media, em geral, a saída do Euro merece simpatia, pois o facilitismo atrai mais audiências – ficar no Euro implica controlo de despesas e partilha de soberania, isto é, dá trabalho. E corre a ideia de que fora do Euro não sofreríamos crises desta gravidade. Como se Portugal não tivesse tido duas graves crises de endividamento externo em 1977 e 1983, e ainda nem se sonhava com o Euro…
 
Mais um: a carta de demissão de Vitor Gaspar. Numerosos comentadores, e jornalistas nessa posição, andam a dizer que Gaspar reconheceu o falhanço da sua política e logo concluem que o Governo devia mudar de política. Gaspar fez considerações infelizes e desnecessárias sobre liderança, mas não escreveu nada que indique que a sua política falhou. Diz, sim, que por ter falhado as previsões perdeu credibilidade, a qual é indispensável na nova fase, de orientação explícita para o crescimento; e que esta fase é possível por a austeridade ter funcionado. É óbvio que falhar previsões não significa falhar uma política; só não falha previsões quem não as faz e os erros das previsões devem-se sobretudo à alteração de pressupostos que estão fora do controlo de quem dirigiu ou executou a política. Todas as pessoas podem perceber isto; mas há algumas que não fizeram esforço para perceber (nem para perceber como se fazem previsões), e outras têm uma agenda na qual não encaixam os factos.
 
E ainda outro: se a ministra Maria Albuquerque mentiu a respeito dos “swap”. Ouvi por inteiro as declarações de Gaspar e de Maria Albuquerque, por várias vezes, e aquilo que afirmam é que de "swaps" em geral, e de "swaps" nas empresas públicas, há muito que se ouvia falar; o que o Governo de Sócrates não disse foi a situação em concreto dos contratos de "swap" das empresas públicas portuguesas em Jun-2011. Por isso, Teixeira dos Santos pediu um relatório à IGF que só esteve pronto em Jul-2011; e nem este explicava todas as implicações em concreto dos contratos. Muitos, sem conhecerem o problema em concreto, dizem que o Governo levou tempo a mais; reconhecem, implicitamente, que o problema está a ser resolvido, mas estão, na prática, a branquear os três factos mais relevantes: o Governo de Sócrates deixou as empresas públicas sem supervisão nesta matéria; não conhecia a situação concreta em Jun-2011; e, o pior de todos, não fez nada para o resolver. E atribuem igual culpa a ambos os governos…
 
Por fim, os media querem despesas públicas elevadas e impostos baixos. Claro que isso é bom para as audiências e muitas pessoas acreditam que é possível só por alguém o dizer no espaço público – e depois queixam-se de serem enganados pelos políticos em campanha eleitoral… Quem quer menos impostos tem de aceitar mais baixas despesas, pelo menos enquanto o crescimento económico não superar 2-3%. Até lá, há que cortar despesas, porque só assim se reduz o défice e a dívida pública pára de crescer. Mas é claro que os media acham que perdem audiências se defenderem cortes nas despesas; defender coisas que soam bem às pessoas, ainda que sejam opostas e mutuamente exclusivas, e estar contra o Governo, é mais popular e não prejudica as audiências. Muitas pessoas não querem perceber isto…
Este caso revela um dos problemas das modernas sociedades democráticas: os governos que procuram soluções equilibradas entre interesses divergentes acabam por ser criticados por uns e outros, pois nenhuma das partes vê no compromisso o que defendia à partida, e porque as partes esperam que os governos lhes dêem tudo o que elas querem. A conclusão dos media (superficial, como é de prever) é que os governos falharam. A seriedade exige que se avalie até que ponto cada parte viu as suas pretensões satisfeitas e que críticas duma parte se dirigem, de facto, à outra parte. Claro que isto obriga a investigar; dá trabalho. Por vezes, os jornalistas pedem apreciações a especialistas, mas nas entrevistas balizam-nas em respostas curtas e linguagem simplista – “para as pessoas perceberem”… – em directo, ou em peças editadas que se resumem a “sound bites” ou pouco mais.
Depois, muitos admiram-se por os políticos usarem linguagem simplista e manipuladora. Que se pode esperar dos deputados em debates no plenário ou nas comissões, senão que dêem o seu melhor por produzir “sound bites” para telejornais e capas de jornais? Não é isso que os media e as suas bases de apoiantes lhes “pedem”? E é isso que o resto do país procura e quer?
 
Claro que há mais casos como os referidos, com um elemento comum: alguém se recorda de jornalistas e comentadores que tentam adivinhar ou prever eventos futuros admitirem os erros quando (frequentemente) falharam? E no entanto são ligeiros a recomendar demissões…
 
Com a crise das TVs, não pode surpreender a proliferação (“praga”?) de comentários políticos, mais baratos do que outros programas, pois a exibição na TV já é suficiente remuneração para muitos comentadores. Poucos deles têm suficiente capacidade teórica e analítica para perceber a realidade que comentam, e nada mais fazem do que integrar a intriga e a “espuma” com que se cruzam ou que ouvem. Bastantes cobrem uma agenda pessoal ou de grupo com a capa do comentário político. Por vezes, surgem como jornalistas-especialistas na matéria, pretendendo com isso dar uma ideia de credibilidade – quando apenas estão a “fazer opinião”. A falta de fundamentação com que falam é confrangedora; mas são os “sound bites” (às vezes, o humor) e não a clareza de raciocínio ou a fundamentação que lhes asseguram a presença nas TVs.
 
Nalguns casos, os comentadores ajudam a perceber muitas coisas. Por exemplo, ouvir Manuela Ferreira Leite, ministra das Finanças de 2002 a 2004, ajuda a perceber por que razão o país não piorou então – mas também não melhorou nem mudou o rumo.
Pelo contrário, penso que há sempre algo de relevante a aprender com António Costa Pinto, Joaquim Aguiar e João César das Neves. Ouço Marcelo Rebelo de Sousa, porque é importante saber qual é a agenda dele; ou seja, o que pensa e diz um muito provável candidato a PR.
 
Todos os comentadores têm liberdade de expressão e as TVs liberdade de escolha. E eu tenho liberdade, que exercito com assiduidade, de ignorar a larga maioria, como talvez faça a maioria dos portugueses, deixando-os a falar uns para os outros e a manipular quem o queira ser.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

A Alternativa


Os media procuram a todo o custo uma alternativa à austeridade: tudo o que pareça justificar que se deve acabar com a austeridade merece eco e repetição; tudo o que justifique que a austeridade é necessária mal se noticia e não se repete.
Os media tentam corresponder às expetativas das suas audiências; e, claro, muitos dos seus jornalistas e comentadores também esperam ter proveito pessoal do fim da austeridade.
A melhor prova disto foi a cobertura das declarações do Primeiro-Ministro da Finlândia (11-Abr-2013) de que Portugal estava no caminho certo, e que o dizia com base na experiência do seu país: uma perda acumulada do PIB superior a 10% no período 1990-1994, com o desemprego a atingir os 20%, e nova perda no PIB de 8% em 2009 (ver figura).

”Com o mal dos outros podemos bem”. Mas estes dados deviam fazer refletir os que falam da crise portuguesa como trágica: houve quem passasse pior e o tenha superado, bem, sem nós sequer ligarmos a isso. Ajudam a explicar a falta de paciência de alguns finlandeses (menos do que em Portugal vociferam contra os países do Norte da Europa). E mostram que muito se diz no espaço mediático sem saber dos factos e dos números concretos.

Do espaço público emerge também o nosso sebastianismo: enquanto vamos fazendo pela vida, não deixamos de nos lamentar e desejar que outros, ou por magia, nos tragam “a solução”, para os nossos problemas.
 
Neste contexto, emergiu aquilo que o PS de Seguro chama “a alternativa” à austeridade e ao atual Governo. Vejamos a narrativa.
Desde que Seguro chegou a Secretário-Geral do PS que eram observáveis as tensões com os socratistas, como António Costa. E adivinhava-se que Seguro tentava fazer o que podia para se desvincular do passado, e do Memo da Troika em especial, sendo várias vezes criticado por isso por Costa na Quadratura do Círculo. Não custava antecipar que a aproximação das eleições autárquicas elevaria a pressão sobre Seguro e que este iria “cavalgar” o descontentamento popular com a austeridade para obter um bom resultado eleitoral e aguentar-se; de facto, iria passar-se com Seguro ou qualquer outro dirigente eleito – a tentação e os riscos são muito grandes para não o fazer.
Reconheceu implicitamente que é necessário reduzir as despesas públicas e não aumentar mais os impostos. Foi de encontro ao sentir popular, e contrariou a visão socialista do Estado – mas superou as tensões da contradição exigindo a renegociação do Memo e a redução dos juros anuais, coisa que soa bem ao povo de esquerda, que acha que a dívida é ilegítima e não é para pagar (pena que não o tenham dito aos credores quando se estava a pedir emprestado). Mas não surpreende em quem sabe que não vai ter de ser consequente com o que diz.
A redução dos juros anuais, para quem não conhece os números, soa muito bem e encaixa bem no sebastianismo português. Só que a aritmética revela dois “pequenos” problemas:
- as taxas já são muito baixas (os juros são altos, porque o montante em dívida é enorme);
- a redução das taxas depende de aprovação dos credores; sendo baixas, e existindo sempre algum risco de incumprimento, não é provável que as reduções nos juros possam ser grandes, mesmo que os credores o aprovem.
Quer dizer, o PS assenta “a alternativa” em decisões alheias a Portugal, quando Portugal está sob resgate e dependente do financiamento alheio. Pior: o PS espera que quem nos empresta nos facilite a vida, porque o ajustamento é duro, quando se sabe que outros países passaram por situações piores sem se queixarem tanto, ou sem significativo apoio externo.
 
A posição do PS tem uma dualidade, que só a fraca memória pode explicar. A narrativa da justificação do excessivo endividamento, que vem de Sócrates, Seguro evitou, e Costa impôs, é que ele se deveu às alegadas orientações da União Europeia em 2009, para minimizar os efeitos da Crise Financeira Internacional.
Os números provam que o excessivo endividamento privado já vinha sendo notado pela OCDE, desde 1998. O endividamento público (incluindo a desorçamentação devida a Sócrates y sus muchachos) e o desemprego vêm de 2007-8. Em 2009, houve três eleições em Portugal. Mas então cabe perguntar:
 
- O endividamento com que Sócrates carregou Portugal deveu-se a “orientações da UE”? Com que base constitucional ou legal?
 
- As rendas excessivas e os contratos leoninos das PPP e das energias renováveis também se deveram a “orientações da UE”? Com que base constitucional ou legal?
 
- As obras que Sócrates anunciou por todo o país, e pelas quais ele reclamou mérito, foram de iniciativa alheia? Então porque não o disse logo em vez de reclamar o mérito para ele?
 
- Em 2009, não estando Portugal sob emergência financeira, o Governo era forçado a aceitar as “orientações da UE”; mas agora, sob resgate, é que vai conseguir impor a sua vontade?
 
Ou seja, quando o PS estava no Governo e Portugal tinha autonomia plena, fomos “obrigados” a endividar-nos. Agora que o PS não está no Governo, e que estamos sob resgate é que vamos fazer o que queremos. É a demagogia no seu melhor – mas os media “olham para o lado”…
Com críticas generalizadas à fraca liderança de Seguro, e à falta de uma alternativa do PS, com eleições daqui a alguns meses, não pode surpreender que seja este o resultado.
 
A dualidade de critérios é moralmente reprovável, mas não é novidade num PS que “se desfez” de Rui Mateus e do seu livro “Contos Proibidos”, enquanto afirma ser garantia das liberdades.
Podia pedir-se, ou esperar-se, mais ou outra coisa do PS? Duvido. O seu passado não me fazia esperar nada melhor.
Mas, mais importante, pedir consensos ao PS fica perto de um pedido de suicídio. Os partidos existem para chegar ao poder através de eleições, e ganha eleições quem consegue explorar melhor o descontentamento com o governo em funções. Consensos com os governos tornam as oposições solidárias com as decisões dos governos, e também responsáveis aos olhos dos eleitores.
Dispenso o consenso e prefiro que o PS recolha os descontentes dentro do sistema.

domingo, 10 de março de 2013

Moral da história


Temo que dentro de alguns anos voltemos a ter de sofrer um ajustamento doloroso como o que estamos a atravessar.
Este receio funda-se em dois aspectos, recentemente constatados:
(1) Um, a sondagem que revelou as prioridades para o corte dos €4b: em primeiro lugar, cortar nas PPP; depois, reduzir os juros; e em terceiro, reduzir 8 mil militares.
(2) O outro, a inconsistência generalizada das pessoas, que querem ter impostos baixos e muito apoio do Estado e das autarquias (elevadas despesas públicas).

Apesar disso, vejo sinais animadores:
(a) Tem fraco eco o populismo de quem exige crescimento em vez de austeridade.
(b) As pessoas estão incomodadas e protestam, mas a sociedade funciona normalmente.

Desenvolvendo os aspectos preocupantes, realço o seguinte:
    Não dou grande valor às sondagens, sobretudo quando precisam de um grande número de contactos para obter uma resposta validada, e quando os resultados revelados pelos media são manipulados (passam a projecções e opiniões). De resto, as perguntas feitas podem induzir respostas ou ser ambíguas e permitir sentidos muito diversos nas respostas. Ainda assim, as sondagens podem revelar informação relevante. No caso em análise, as respostas revelaram algo muito frequente e não só em Portugal: “que se faça sem custos para mim”. Com base na minha amostra de portugueses, não me surpreende; genericamente, é o que diz a expressão inglesa: “not in my backyard (NIMBY)”. E serve para moderar o entusiasmo dos que se convenceram que os militares são muito apreciados pelos portugueses.
   Constato, com grande frequência, que as mesmas pessoas que defendem aquele tipo de prioridades (os militares preferirão a redução de fundações e assessores ministeriais à redução de militares) também exigem “equidade” e “justiça”. Embora muito usados, estes são conceitos complexos e poucos cidadãos têm um pensamento estruturado sobre eles; na prática, cada um define-os como mais jeito lhes dão, em cada circunstância. Não custa encontrar pessoas que exigem justiça (“tratar igual o que é igual, e diferentemente o que é diferente”) mas que exigem dos outros mais do que exigem de si próprias; como não custa encontrar quem acha que a equidade significa “os outros” pagarem mais impostos.

   Há quem identifique nesta dualidade interesseira o individualismo (ou egoísmo) e a pobreza moral das sociedades ocidentais; há excepções, e muitas, mas são isso mesmo. Seja como for, concentrar energias em debates sobre conceitos complexos e subjectivos, tornados em “armas de arremesso” mediáticas, parece-me um desperdício nocivo. Mais: a subjectividade facilita a fulanização e a conversão dos debates em confrontos pessoais.

   Regressando aos resultados das sondagens, é curioso recordar que ninguém protestou por se construírem mais auto-estradas, por não haver portagens, por se fazerem aquisições em PPP ou em “leasing”, por se criarem fundações ou institutos públicos a eito, ou por Sócrates ter preferido gastar em grandes obras públicas (votando com ele a favor do TGV) em vez de pequenas, como requalificação urbana ou recuperação de monumentos (sugerido em 2008 por Campos e Cunha e outros). Só houve manifestações a pedir mais obras, os media cobriam os anúncios de obras em tom positivo e os poucos (como Medina Carreira) que avisavam que elas teriam de ser pagas por impostos foram ignorados ou desprezados. Com que autoridade moral pode alguém criticar agora aumentos de impostos se não se opôs no passado ao aumento das despesas públicas, em geral exigidas por grupos de pressão? É fácil agora acusar “os outros” (políticos, a má gestão da Segurança Social, as fundações, etc); mas onde estavam os críticos, quando as despesas e o endividamento dispararam?
  
   Muitas vezes comparo o actual ajustamento ao tratamento de uma doença grave, como a dependência de drogas ou um cancro: os tratamentos são dolorosos, demorados, sofrem recuos e nenhum médico garante os resultados – mas são a única hipótese que o doente tem de se salvar. E não ocorre a ninguém no seu são juízo acusar um médico que aplica os tratamentos, como uma quimioterapia, a um doente, de lhe estar a fazer mal; nem se larga o tratamento a meio por ter efeitos secundários nocivos, excepto em condições extremas.

   Esta dualidade de tantas pessoas faz-me recear que, logo que apareça algum político a prometer benefícios, sugerindo que eles são direitos e que não têm custos ou um indefinido as pagará, terá grande apoio popular e eleitoral, mesmo entre pessoas diferenciadas e que se acham muito informadas. O erro e o ciclo repetir-se-ão.

Dito isto, registo pontos positivos.
   É surpreendente que as intenções de voto nas sondagens (sublinho, as intenções, e não os resultados manipulados que os media divulgam) não sejam mais desfavoráveis ao Governo, sobretudo quando a sua comunicação é fraca (não faz propaganda e explica-se mal) e a dor do programa de ajustamento chega a todos (claro que a cada um de modo específico).
   Uma vez que há mais de dois anos que este ajustamento está em curso, e que os partidos da esquerda tanto têm protestado contra ele, uma explicação razoável para não crescerem nos votos nem nas intenções de voto é que não convencem; a maioria trata de se adaptar e aguarda para ver. Muitos recordamo-nos dos que, ainda há poucos anos, criticavam o consumismo e o crescimento económico capitalista, e agora são os “campeões” do aumento da procura interna e do crescimento – enquanto as políticas desde 2002 não trouxeram crescimento ao país (só o capitalismo pode produzir crescimento “que se veja”). Não custa admitir que muitos duvidam das certezas das alternativas, daqueles que trouxeram o país à beira da bancarrota: se sabem como se induz o crescimento económico, porque não o fizeram de 2005 a 2011? E que fez tantos converterem-se ao crescimento capitalista?

   Entre o “povo de esquerda”, muitos desdenham o povo em geral por não se revoltar – tantas vezes os mesmos que acham que o povo só sabe escolher quando vota à esquerda, exigindo respeito pelos resultados eleitorais que lhes são favoráveis, e disputando-os “na rua” quando não são. Mais uma dualidade interesseira…

   Se a maioria não se sente convencida pelo “que se lixe a Troika”, pela saída do Euro ou por deixar de pagar as dívidas, talvez isso se deva à consciência de que, colectivamente, temos a responsabilidade de cumprir os compromissos firmados em nome do país, pelo Governo que nos levou à beira da bancarrota. Talvez a maioria sinta que não há punição, mas aquilo que todos secretamente sabemos e tentamos evitar com expressões como NIMBY: somos responsáveis pelas nossas acções, e ninguém nos obrigou a endividar.

   Isso também será consistente com um facto notado por quem observa de fora e ao longo do tempo: há mais empresas fechadas e menos trânsito, mais greves, menos obras, mas a vida decorre normalmente e sem grandes diferenças face ao passado. Apesar do grande esforço que alguns fizeram e fazem para haver convulsões sociais que forcem a abandonar o ajustamento em curso – sem quererem ver que na Grécia as convulsões não trouxeram nada de melhor ao país e que o ajustamento far-se-á sempre – não tem havido convulsões. Ninguém sabe se virão a ocorrer; estou convencido que há quem se esteja a esforçar por as causar, incluindo alguns militares – mas o corrente insucesso, que os leva a inflamarem cada vez mais o seu discurso, e a “descolarem” da realidade, tranquiliza-me.

Não sei se este ajustamento nos vai permitir aprender a lição de que as despesas do Estado virão sempre a ser pagas por impostos, sobretudo pela classe média. Mas já era hora!

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Relatório do FMI

Quando se discute a forma não se discute – não se quer discutir – a substância. Em vez de se discutir a questão de fundo – que Estado os portugueses querem e podem colectivamente sustentar pelos seus impostos – anda-se a falar de coisas laterais a propósito do Relatório do FMI. Senão vejamos.
Primeiro, numa sociedade livre, é absurdo dizer que só há um mês para discutir a Reforma do Estado (também não simpatizo com “refundação do Estado” e prefiro “repensar o Estado”, mas isso é mais uma questão lateral, a que se dedica quem quer evitar a substância). Medina Carreira anda a falar nisso desde 2005; vários comentadores disseram-no em livros ou nas TVs desde 2009, e sublinharam-no após a entrada em vigor do Memo da Troika. Quando tantos se agarram ao que os comentadores dizem, por que razão os seus comentários e apelos com anos à Reforma do Estado têm sido ignorados?
Segundo, se o problema é haver pouco tempo, então para quê perdê-lo a discutir coisas laterais, como se é técnico ou político, se foi encomendado ou não, se tem erros, etc. etc.?
Terceiro, como se pode dizer que este relatório visa o fim do Estado Social, quando está em causa uma redução de 5% das despesas do Estado?
Quarto, por que razão o tom da cobertura mediática relativa a cortes na despesa pública era favorável aos mesmos, quando se associavam os cortes a “gorduras” ou a divisões no Governo, e agora tende a ser neutra ou adversa aos cortes, apresentando-os como perdas civilizacionais? Será porque os media intuem que as suas audiências dependem do tom com que abordam os cortes das despesas públicas? E não estarão os media a servir também os seus interesses através da manipulação do tom?

Acresce ainda a posição pública de vários intelectuais, que tanto criticam a falta de debates sérios entre os portugueses, e que só se ocuparam do relatório (na forma e nos detalhes), ignorando a questão de fundo. Porque dos intelectuais espera-se que apresentem e defendam teses e raciocínios que até podem ser impopulares, como manter os impostos e as despesas altos – mas que se comprometessem com alguma coisa e não se cingissem a “dizer mal”. A intelectualidade portuguesa teve várias oportunidades de liderar o debate, mas acabou por revelar um (não-surpreendente) espírito de Pilatos. À semelhança dos artistas, muitos revelaram a busca do aplauso e da popularidade (ou dos “like” no Facebook).

Estes pontos revelam as incoerências e a manipulação da análise e do debate no espaço público sobre as despesas públicas. Os cortes acabarão por acontecer, muita gente se vai queixar e, passados uns anos, está tudo habituado – e o que ficar passa a ser defendido com “unhas e dentes” como conquista civilizacional. Já aconteceu, até porque a memória das pessoas é curta – já poucos se lembram do que Soares fez e disse, e o que aconteceu, em 1983-1985…

UM BOM RELATÓRIO
O Relatório do FMI é um bom relatório: enquadra o problema, descreve alternativas em pormenor e quantifica-as; oferece mais alternativas do que o objectivo de cortes de €4bn, o que permite escolher. Tem a credibilidade de uma organização internacional com larga experiência, e válida, na matéria. Isso é o que se espera de um relatório desta natureza.
Tendo de fazer um relatório deste tipo, poucos haveria em Portugal capazes de ceder à tentação de nele reflectir os seus interesses especiais ou de “cavalgar a onda” do descontentamento – não é que haja falta de portugueses competentes, mas poucos têm independência e paciência para defender posições impopulares no espaço público. É compreensível a falta de paciência para suportar os comentários de tantos que falam de temas económicos complexos, e que devem a sua formação na matéria a títulos e chavões dos media (enquanto ridicularizam outros pelas equivalências…); “a geração mais qualificada de sempre” aprendeu com a sociedade que mais fala de PIB, crescimento, multiplicadores ou previsões, sendo duvidoso que saiba sequer as respectivas definições.
Se as alternativas quantificadas são implementadas, ou sequer aceites, nada tem a ver com a qualidade do relatório: podem recusar-se todas as opções, por razões políticas, que o relatório não deixa de ser bom por isso – pode é ter sido um desperdício. E quem decide são os órgãos de soberania, que podem fundamentar melhor as suas decisões, quando têm assessoria técnica que não tem interesses instalados. O tempo que alguns gastam a tentar retirar credibilidade ao Relatório do FMI revela que ele é relevante e útil, e o que fariam se o autor fosse uma entidade interna. Tentam “matar o mensageiro”, mas a realidade tem muita força e não desaparece por se afastar um relatório. O Relatório do FMI permite ultrapassar o âmbito das discussões inconsequentes, em que se debatem ideias vagas e onde tudo é possível, para o domínio das opções realistas, que têm consequências positivas e negativas, e que se podem estimar. Claro que fazer e revelar opções incomoda muita gente.

Sobre a Reforma do Estado, como todos, desejo impostos mais baixos. E desejo que haja menos grupos de pressão a interferir com as minhas decisões, ou a forçar-me a sustentar as preferências deles.
Por consequência, defendo que as despesas públicas têm de se reduzir, provavelmente mais de 5%, pois não é razoável esperar que o PIB cresça anualmente 3% ou mais nos próximos 2-3 anos. E a minha prioridade para as despesas públicas é afectar recursos aos mais desfavorecidos e não à classe média.
Como valorizo muito o meu dinheiro, aceito bem pagar mais taxas moderadoras por usar serviços de saúde, ou aforrar para ter um rendimento adicional na reforma. Defendo a existência de limites para as pensões pagas pelo Estado. Parece-me muito bem que exista um sistema misto (público e privado), como em países como a Suíça e outros; e não me choca nada que haja entidades privadas, reguladas, a operar e a ganhar dinheiro com a gestão de um tal sistema.

Este é o tipo de debate que todos sabemos que é inevitável, mas que uns milhares tentam controlar no espaço público com “megafones”, para não verem os seus interesses afectados; a maioria silenciosa tem a noção de que há uma certa inevitabilidade neste ruído no espaço público e dos cortes a fazer. E assim, eles vão acontecer.