quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O Relatório do FMI

Quando se discute a forma não se discute – não se quer discutir – a substância. Em vez de se discutir a questão de fundo – que Estado os portugueses querem e podem colectivamente sustentar pelos seus impostos – anda-se a falar de coisas laterais a propósito do Relatório do FMI. Senão vejamos.
Primeiro, numa sociedade livre, é absurdo dizer que só há um mês para discutir a Reforma do Estado (também não simpatizo com “refundação do Estado” e prefiro “repensar o Estado”, mas isso é mais uma questão lateral, a que se dedica quem quer evitar a substância). Medina Carreira anda a falar nisso desde 2005; vários comentadores disseram-no em livros ou nas TVs desde 2009, e sublinharam-no após a entrada em vigor do Memo da Troika. Quando tantos se agarram ao que os comentadores dizem, por que razão os seus comentários e apelos com anos à Reforma do Estado têm sido ignorados?
Segundo, se o problema é haver pouco tempo, então para quê perdê-lo a discutir coisas laterais, como se é técnico ou político, se foi encomendado ou não, se tem erros, etc. etc.?
Terceiro, como se pode dizer que este relatório visa o fim do Estado Social, quando está em causa uma redução de 5% das despesas do Estado?
Quarto, por que razão o tom da cobertura mediática relativa a cortes na despesa pública era favorável aos mesmos, quando se associavam os cortes a “gorduras” ou a divisões no Governo, e agora tende a ser neutra ou adversa aos cortes, apresentando-os como perdas civilizacionais? Será porque os media intuem que as suas audiências dependem do tom com que abordam os cortes das despesas públicas? E não estarão os media a servir também os seus interesses através da manipulação do tom?

Acresce ainda a posição pública de vários intelectuais, que tanto criticam a falta de debates sérios entre os portugueses, e que só se ocuparam do relatório (na forma e nos detalhes), ignorando a questão de fundo. Porque dos intelectuais espera-se que apresentem e defendam teses e raciocínios que até podem ser impopulares, como manter os impostos e as despesas altos – mas que se comprometessem com alguma coisa e não se cingissem a “dizer mal”. A intelectualidade portuguesa teve várias oportunidades de liderar o debate, mas acabou por revelar um (não-surpreendente) espírito de Pilatos. À semelhança dos artistas, muitos revelaram a busca do aplauso e da popularidade (ou dos “like” no Facebook).

Estes pontos revelam as incoerências e a manipulação da análise e do debate no espaço público sobre as despesas públicas. Os cortes acabarão por acontecer, muita gente se vai queixar e, passados uns anos, está tudo habituado – e o que ficar passa a ser defendido com “unhas e dentes” como conquista civilizacional. Já aconteceu, até porque a memória das pessoas é curta – já poucos se lembram do que Soares fez e disse, e o que aconteceu, em 1983-1985…

UM BOM RELATÓRIO
O Relatório do FMI é um bom relatório: enquadra o problema, descreve alternativas em pormenor e quantifica-as; oferece mais alternativas do que o objectivo de cortes de €4bn, o que permite escolher. Tem a credibilidade de uma organização internacional com larga experiência, e válida, na matéria. Isso é o que se espera de um relatório desta natureza.
Tendo de fazer um relatório deste tipo, poucos haveria em Portugal capazes de ceder à tentação de nele reflectir os seus interesses especiais ou de “cavalgar a onda” do descontentamento – não é que haja falta de portugueses competentes, mas poucos têm independência e paciência para defender posições impopulares no espaço público. É compreensível a falta de paciência para suportar os comentários de tantos que falam de temas económicos complexos, e que devem a sua formação na matéria a títulos e chavões dos media (enquanto ridicularizam outros pelas equivalências…); “a geração mais qualificada de sempre” aprendeu com a sociedade que mais fala de PIB, crescimento, multiplicadores ou previsões, sendo duvidoso que saiba sequer as respectivas definições.
Se as alternativas quantificadas são implementadas, ou sequer aceites, nada tem a ver com a qualidade do relatório: podem recusar-se todas as opções, por razões políticas, que o relatório não deixa de ser bom por isso – pode é ter sido um desperdício. E quem decide são os órgãos de soberania, que podem fundamentar melhor as suas decisões, quando têm assessoria técnica que não tem interesses instalados. O tempo que alguns gastam a tentar retirar credibilidade ao Relatório do FMI revela que ele é relevante e útil, e o que fariam se o autor fosse uma entidade interna. Tentam “matar o mensageiro”, mas a realidade tem muita força e não desaparece por se afastar um relatório. O Relatório do FMI permite ultrapassar o âmbito das discussões inconsequentes, em que se debatem ideias vagas e onde tudo é possível, para o domínio das opções realistas, que têm consequências positivas e negativas, e que se podem estimar. Claro que fazer e revelar opções incomoda muita gente.

Sobre a Reforma do Estado, como todos, desejo impostos mais baixos. E desejo que haja menos grupos de pressão a interferir com as minhas decisões, ou a forçar-me a sustentar as preferências deles.
Por consequência, defendo que as despesas públicas têm de se reduzir, provavelmente mais de 5%, pois não é razoável esperar que o PIB cresça anualmente 3% ou mais nos próximos 2-3 anos. E a minha prioridade para as despesas públicas é afectar recursos aos mais desfavorecidos e não à classe média.
Como valorizo muito o meu dinheiro, aceito bem pagar mais taxas moderadoras por usar serviços de saúde, ou aforrar para ter um rendimento adicional na reforma. Defendo a existência de limites para as pensões pagas pelo Estado. Parece-me muito bem que exista um sistema misto (público e privado), como em países como a Suíça e outros; e não me choca nada que haja entidades privadas, reguladas, a operar e a ganhar dinheiro com a gestão de um tal sistema.

Este é o tipo de debate que todos sabemos que é inevitável, mas que uns milhares tentam controlar no espaço público com “megafones”, para não verem os seus interesses afectados; a maioria silenciosa tem a noção de que há uma certa inevitabilidade neste ruído no espaço público e dos cortes a fazer. E assim, eles vão acontecer.