quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Preocupações


Por estes dias, em relação à situação do país, preocupam-me duas coisas em especial: a intolerância à solta; e a inclinação de tantos para não corrigir, e até repetir, os erros que nos trouxeram à bancarrota.
 
A intolerância revela-se pela incapacidade de discutir sem adjetivar ou sem cair no insulto pessoal, ridicularizando e até diabolizando os que pensam de modo diferente. A ideia de que quem “não pensa como eu/nós” só pode ter más intenções, ou estar conluiado mais ou menos conscientemente com malfeitores é um perigoso sinal. Confrontados os intolerantes com estas análises, a sua conduta vem a confirmá-las, insistindo em que “a realidade” o prova – e tantas vezes são os mesmos que rejeitam a ideia de que “não há alternativa” à austeridade... Não se limitam a admitir que têm uma visão, entre várias possíveis, do mundo; sentem-se autorizados a classificar moralmente outras visões e considerá-las mal-intencionadas. Todos emitimos juízos de natureza moral; mas é perigoso, porque abre um caminho, que, por exemplo, a Inquisição deixou gravado na História, por se concluir “na fogueira”. A criação do Estado de direito visou também remover a carga moral das discussões políticas, e a decisão pelo uso da força.
Há muitas pessoas nas esquerdas com esta conduta. Isso ficou bem patente, por exemplo, a propósito dumas declarações de Isabel Jonet em Dez-2012, e após a morte de António Borges, há dias.
Mas também há pessoas assim na direita nacionalista e não-democrática em geral. Têm menos expressão mediática do que as esquerdas, mas manifestaram-se a propósito da morte de Saramago e encontram-se nos blogues e nas redes sociais.
A reforma dos colégios militares conseguiu combinar intolerantes de ambos os lados, embora no caso das esquerdas talvez se trate de aproveitar mais uma “arma de arremesso” contra o Governo; se não for isso, só o corporativismo pode explicar a crítica das esquerdas a uma reforma que reduz desigualdades e subsídios públicos a quem não é desfavorecido (claro que o melhor era acabar de todo com eles).
Felizmente há muitas pessoas de esquerda e de direita com quem se pode ter um diálogo, que não acham o mundo digital, que aceitam diferentes visões do mundo, e até aceitam ser convencidas de teses alheias. Com estas aprende-se e enriquece-se, porque têm algo a acrescentar ao debate, e acrescentam.
 
Em qualquer caso, não estou a sugerir, de modo nenhum, que a intolerância ou posições intolerantes devam ser proibidas ou de algum modo vedadas. A liberdade de expressão deve prevalecer, até porque a sociedade moderna pode conviver com este tipo de intolerância; esta tem longa tradição entre nós, mas será mais superficial do que parece e também refletirá as circunstâncias da contração do Estado. Muita desta intolerância é retórica e construída para realizar previsões de turbulência e subversão sociais; como o tempo passa sem essas previsões se concretizarem (assim como as de que a austeridade ia matar a economia), e o que surge são sinais de sucesso do ajustamento, cresce o desespero e o esforço (cada vez mais duro e inglório) para as realizar…
 
A eventual repetição das asneiras revela-se a respeito da reforma do Estado. Parece-me clara a razão de só agora se estarem a efetuar cortes duradouros nas despesas de pessoal e pensões. Primeiro, porque os cortes duradouros obrigam as pessoas a mudar de vida; as pessoas gostam de mudar, mas não gostam de ser obrigadas a isso. No Estado, é hábito encarar os cortes como coisa temporária: os servidores do Estado conheciam a contenção real, depois a nominal, e sabiam que mais tarde ou mais cedo um governo aumentaria salários ou avançaria com os “pet-projects” que estavam em “banho-maria”. Os atuais cortes nominais podem conseguir alterar a cultura interna do Estado. Segundo, porque uma reforma que demore anos a planear dá mais oportunidades aos que perdem com ela para encontrarem meios de a “torpedear”; quando ouço alguém a dizer que “faltam estudos” para realizar uma reforma fico logo desconfiado que o que falta é tempo para algum interesse sectorial a desvirtuar. Terceiro, é claro que sem a troika, Portugal estaria na bancarrota; mas ninguém quer perder os benefícios que recebe do Estado – e ao mesmo tempo quer pagar menos impostos!... – o que atrasa as reformas.
Tocou-se, portanto, no “ponto sensível” de todos. Daí que eu tenha muitas dúvidas que tratar logo em 2011 de reduzir pessoal e pensões (os aspetos da reforma do Estado agora em causa) só ia conseguir “envenenar” o ambiente político, o que me parece que inviabilizaria o Acordo de Concertação Social alcançado. Basta ver o que está a custar a Paulo Portas elaborar e divulgar o “guião da reforma do Estado”. É fácil dizer o que se devia ter feito em 2011, pois não há maneira de saber como teria sido. E também não se pode provar que não haveria Acordo de Concertação Social – mas se ele já foi difícil então, é razoável supor que seria inviável agora com todos os parceiros sociais contra o Governo.
Mas enquanto, coletivamente, não estivermos decididos a reduzir as despesas do Estado, não vamos reduzir o défice (porque todos queremos pagar menos impostos). E se não reduzirmos o défice, podemos precisar de mais apoio externo (segundo resgate). Se não fosse a terrível humilhação internacional e a dureza do que ele exigirá, o novo resgate era sedutor, pois pode ser a única forma de mostrar com clareza aos que não querem perceber que há que cortar despesas públicas. O problema maior é que os que não querem ver são os que passam com pouco sofrimento por tal situação; porque os que mais sofrem não formam lobbys nem têm capacidade de fazer pressão nos media.
A maior preocupação vem da conduta dos dirigentes do PS, que dão sinais consistentes de oposição aos cortes a realizar, e de vontade de inverter os cortes já realizados, nas despesas públicas. É o discurso usual para ganhar eleições em Portugal (estamos em período eleitoral). Mas era desejável que os portugueses tivessem coletivamente aprendido que foi essa conduta, com êxito eleitoral (prometer aumento de despesas com o dinheiro dos contribuintes), que nos sobre-endividou e trouxe à bancarrota; e que nos vai manter a ela “encostados” se não reduzirmos depressa o défice público. Claro que para não reduzir despesas e evitar enfrentar lobbys (pois opor-se-lhes tem relevantes custos mediáticos e de popularidade), o PS fala sempre em crescimento, coisa que quase não conseguiu de 2005 a 2011; aliás, só em 3 trimestres se superou o recente aumento de 1,1% do PIB. Esta conduta faz prever que o PS, para conseguir voltar ao Governo, voltará a prometer tudo e o seu contrário aos eleitores com o dinheiro dos contribuintes. E não sei se os portugueses não vão deixar-se seduzir pelos discursos bem-sonantes, como tradicionalmente fizeram antes. Que os dirigentes do PS, ofuscados pelas pressões eleitorais, sejam incapazes de perceber a mudança necessária não surpreende. Mas que tantos portugueses, que estão a pagar e a sofrer os exageros, não percebam e não exijam mais seriedade aos partidos do arco da governação custa a entender; porque se não o fizerem, dentro de poucos anos o país pode voltar de novo à bancarrota, e já se sabe quem mais vai sofrer com ela – os que não têm voz nos media para protestar.
Esta crise é uma oportunidade para as elites portuguesas* revelarem um papel de liderança. Porém, se considerarmos as posições públicas das elites condensadas em torno da reforma dos colégios militares, que podiam dar o exemplo de redução de despesas públicas (até porque não são desfavorecidos, em geral) e que não desistem de depender do Estado, fica uma sensação de “orquestra do Titanic”.
Penso que a nossa única esperança é que a União Europeia trave os desvarios despesistas antes de eles serem graves. Mas, a avaliar pela falta de fiscalização do passado e pela tendência de tentar qualquer coisa que pareça não ter custos, duvido da eficácia desse mecanismo e temo que mais facilmente emerja um consenso nacional para deixar o Euro do que para equilibrar as contas públicas.
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* Definidas num sentido descritivo (dirigentes e titulares de posições de topo no Estado e nas demais organizações, incluindo empresas) e não normativo (os melhores), porque raramente coincidirão.