domingo, 10 de março de 2013

Moral da história


Temo que dentro de alguns anos voltemos a ter de sofrer um ajustamento doloroso como o que estamos a atravessar.
Este receio funda-se em dois aspectos, recentemente constatados:
(1) Um, a sondagem que revelou as prioridades para o corte dos €4b: em primeiro lugar, cortar nas PPP; depois, reduzir os juros; e em terceiro, reduzir 8 mil militares.
(2) O outro, a inconsistência generalizada das pessoas, que querem ter impostos baixos e muito apoio do Estado e das autarquias (elevadas despesas públicas).

Apesar disso, vejo sinais animadores:
(a) Tem fraco eco o populismo de quem exige crescimento em vez de austeridade.
(b) As pessoas estão incomodadas e protestam, mas a sociedade funciona normalmente.

Desenvolvendo os aspectos preocupantes, realço o seguinte:
    Não dou grande valor às sondagens, sobretudo quando precisam de um grande número de contactos para obter uma resposta validada, e quando os resultados revelados pelos media são manipulados (passam a projecções e opiniões). De resto, as perguntas feitas podem induzir respostas ou ser ambíguas e permitir sentidos muito diversos nas respostas. Ainda assim, as sondagens podem revelar informação relevante. No caso em análise, as respostas revelaram algo muito frequente e não só em Portugal: “que se faça sem custos para mim”. Com base na minha amostra de portugueses, não me surpreende; genericamente, é o que diz a expressão inglesa: “not in my backyard (NIMBY)”. E serve para moderar o entusiasmo dos que se convenceram que os militares são muito apreciados pelos portugueses.
   Constato, com grande frequência, que as mesmas pessoas que defendem aquele tipo de prioridades (os militares preferirão a redução de fundações e assessores ministeriais à redução de militares) também exigem “equidade” e “justiça”. Embora muito usados, estes são conceitos complexos e poucos cidadãos têm um pensamento estruturado sobre eles; na prática, cada um define-os como mais jeito lhes dão, em cada circunstância. Não custa encontrar pessoas que exigem justiça (“tratar igual o que é igual, e diferentemente o que é diferente”) mas que exigem dos outros mais do que exigem de si próprias; como não custa encontrar quem acha que a equidade significa “os outros” pagarem mais impostos.

   Há quem identifique nesta dualidade interesseira o individualismo (ou egoísmo) e a pobreza moral das sociedades ocidentais; há excepções, e muitas, mas são isso mesmo. Seja como for, concentrar energias em debates sobre conceitos complexos e subjectivos, tornados em “armas de arremesso” mediáticas, parece-me um desperdício nocivo. Mais: a subjectividade facilita a fulanização e a conversão dos debates em confrontos pessoais.

   Regressando aos resultados das sondagens, é curioso recordar que ninguém protestou por se construírem mais auto-estradas, por não haver portagens, por se fazerem aquisições em PPP ou em “leasing”, por se criarem fundações ou institutos públicos a eito, ou por Sócrates ter preferido gastar em grandes obras públicas (votando com ele a favor do TGV) em vez de pequenas, como requalificação urbana ou recuperação de monumentos (sugerido em 2008 por Campos e Cunha e outros). Só houve manifestações a pedir mais obras, os media cobriam os anúncios de obras em tom positivo e os poucos (como Medina Carreira) que avisavam que elas teriam de ser pagas por impostos foram ignorados ou desprezados. Com que autoridade moral pode alguém criticar agora aumentos de impostos se não se opôs no passado ao aumento das despesas públicas, em geral exigidas por grupos de pressão? É fácil agora acusar “os outros” (políticos, a má gestão da Segurança Social, as fundações, etc); mas onde estavam os críticos, quando as despesas e o endividamento dispararam?
  
   Muitas vezes comparo o actual ajustamento ao tratamento de uma doença grave, como a dependência de drogas ou um cancro: os tratamentos são dolorosos, demorados, sofrem recuos e nenhum médico garante os resultados – mas são a única hipótese que o doente tem de se salvar. E não ocorre a ninguém no seu são juízo acusar um médico que aplica os tratamentos, como uma quimioterapia, a um doente, de lhe estar a fazer mal; nem se larga o tratamento a meio por ter efeitos secundários nocivos, excepto em condições extremas.

   Esta dualidade de tantas pessoas faz-me recear que, logo que apareça algum político a prometer benefícios, sugerindo que eles são direitos e que não têm custos ou um indefinido as pagará, terá grande apoio popular e eleitoral, mesmo entre pessoas diferenciadas e que se acham muito informadas. O erro e o ciclo repetir-se-ão.

Dito isto, registo pontos positivos.
   É surpreendente que as intenções de voto nas sondagens (sublinho, as intenções, e não os resultados manipulados que os media divulgam) não sejam mais desfavoráveis ao Governo, sobretudo quando a sua comunicação é fraca (não faz propaganda e explica-se mal) e a dor do programa de ajustamento chega a todos (claro que a cada um de modo específico).
   Uma vez que há mais de dois anos que este ajustamento está em curso, e que os partidos da esquerda tanto têm protestado contra ele, uma explicação razoável para não crescerem nos votos nem nas intenções de voto é que não convencem; a maioria trata de se adaptar e aguarda para ver. Muitos recordamo-nos dos que, ainda há poucos anos, criticavam o consumismo e o crescimento económico capitalista, e agora são os “campeões” do aumento da procura interna e do crescimento – enquanto as políticas desde 2002 não trouxeram crescimento ao país (só o capitalismo pode produzir crescimento “que se veja”). Não custa admitir que muitos duvidam das certezas das alternativas, daqueles que trouxeram o país à beira da bancarrota: se sabem como se induz o crescimento económico, porque não o fizeram de 2005 a 2011? E que fez tantos converterem-se ao crescimento capitalista?

   Entre o “povo de esquerda”, muitos desdenham o povo em geral por não se revoltar – tantas vezes os mesmos que acham que o povo só sabe escolher quando vota à esquerda, exigindo respeito pelos resultados eleitorais que lhes são favoráveis, e disputando-os “na rua” quando não são. Mais uma dualidade interesseira…

   Se a maioria não se sente convencida pelo “que se lixe a Troika”, pela saída do Euro ou por deixar de pagar as dívidas, talvez isso se deva à consciência de que, colectivamente, temos a responsabilidade de cumprir os compromissos firmados em nome do país, pelo Governo que nos levou à beira da bancarrota. Talvez a maioria sinta que não há punição, mas aquilo que todos secretamente sabemos e tentamos evitar com expressões como NIMBY: somos responsáveis pelas nossas acções, e ninguém nos obrigou a endividar.

   Isso também será consistente com um facto notado por quem observa de fora e ao longo do tempo: há mais empresas fechadas e menos trânsito, mais greves, menos obras, mas a vida decorre normalmente e sem grandes diferenças face ao passado. Apesar do grande esforço que alguns fizeram e fazem para haver convulsões sociais que forcem a abandonar o ajustamento em curso – sem quererem ver que na Grécia as convulsões não trouxeram nada de melhor ao país e que o ajustamento far-se-á sempre – não tem havido convulsões. Ninguém sabe se virão a ocorrer; estou convencido que há quem se esteja a esforçar por as causar, incluindo alguns militares – mas o corrente insucesso, que os leva a inflamarem cada vez mais o seu discurso, e a “descolarem” da realidade, tranquiliza-me.

Não sei se este ajustamento nos vai permitir aprender a lição de que as despesas do Estado virão sempre a ser pagas por impostos, sobretudo pela classe média. Mas já era hora!