Por
estes dias, em relação à situação do país, preocupam-me duas coisas em
especial: a intolerância à solta; e a inclinação de tantos para não corrigir, e
até repetir, os erros que nos trouxeram à bancarrota.
A
intolerância revela-se pela incapacidade de discutir sem adjetivar ou sem cair
no insulto pessoal, ridicularizando e até diabolizando os que pensam de modo
diferente. A ideia de que quem “não pensa como eu/nós” só pode ter más
intenções, ou estar conluiado mais ou menos conscientemente com malfeitores é
um perigoso sinal. Confrontados os intolerantes com estas análises, a sua
conduta vem a confirmá-las, insistindo em que “a realidade” o prova – e tantas
vezes são os mesmos que rejeitam a ideia de que “não há alternativa” à
austeridade... Não se limitam a admitir que têm uma visão, entre várias
possíveis, do mundo; sentem-se autorizados a classificar moralmente outras
visões e considerá-las mal-intencionadas. Todos emitimos juízos de natureza
moral; mas é perigoso, porque abre um caminho, que, por exemplo, a Inquisição
deixou gravado na História, por se concluir “na fogueira”. A criação do Estado
de direito visou também remover a carga moral das discussões políticas, e a
decisão pelo uso da força.
Há
muitas pessoas nas esquerdas com esta conduta. Isso ficou bem patente, por
exemplo, a propósito dumas declarações de Isabel Jonet em Dez-2012, e após a
morte de António Borges, há dias.
Mas
também há pessoas assim na direita nacionalista e não-democrática em geral. Têm
menos expressão mediática do que as esquerdas, mas manifestaram-se a propósito
da morte de Saramago e encontram-se nos blogues e nas redes sociais.
A
reforma dos colégios militares conseguiu combinar intolerantes de ambos os
lados, embora no caso das esquerdas talvez se trate de aproveitar mais uma
“arma de arremesso” contra o Governo; se não for isso, só o corporativismo pode
explicar a crítica das esquerdas a uma reforma que reduz desigualdades e
subsídios públicos a quem não é desfavorecido (claro que o melhor era acabar de
todo com eles).
Felizmente
há muitas pessoas de esquerda e de direita com quem se pode ter um diálogo, que
não acham o mundo digital, que aceitam diferentes visões do mundo, e até
aceitam ser convencidas de teses alheias. Com estas aprende-se e enriquece-se,
porque têm algo a acrescentar ao debate, e acrescentam.
Em
qualquer caso, não estou a sugerir, de modo nenhum, que a intolerância ou
posições intolerantes devam ser proibidas ou de algum modo vedadas. A liberdade
de expressão deve prevalecer, até porque a sociedade moderna pode conviver com
este tipo de intolerância; esta tem longa tradição entre nós, mas será mais
superficial do que parece e também refletirá as circunstâncias da contração do
Estado. Muita desta intolerância é retórica e construída para realizar
previsões de turbulência e subversão sociais; como o tempo passa sem essas
previsões se concretizarem (assim como as de que a austeridade ia matar a
economia), e o que surge são sinais de sucesso do ajustamento, cresce o
desespero e o esforço (cada vez mais duro e inglório) para as realizar…
A eventual
repetição das asneiras revela-se a respeito da reforma do Estado. Parece-me
clara a razão de só agora se estarem a efetuar cortes duradouros nas despesas
de pessoal e pensões. Primeiro, porque os cortes duradouros obrigam as pessoas
a mudar de vida; as pessoas gostam de mudar, mas não gostam de ser obrigadas a
isso. No Estado, é hábito encarar os cortes como coisa temporária: os servidores
do Estado conheciam a contenção real, depois a nominal, e sabiam que mais tarde
ou mais cedo um governo aumentaria salários ou avançaria com os “pet-projects”
que estavam em “banho-maria”. Os atuais cortes nominais podem conseguir alterar
a cultura interna do Estado. Segundo, porque uma reforma que demore anos a
planear dá mais oportunidades aos que perdem com ela para encontrarem meios de
a “torpedear”; quando ouço alguém a dizer que “faltam estudos” para realizar
uma reforma fico logo desconfiado que o que falta é tempo para algum interesse
sectorial a desvirtuar. Terceiro, é claro que sem a troika, Portugal estaria na bancarrota; mas ninguém quer perder os
benefícios que recebe do Estado – e ao mesmo tempo quer pagar menos
impostos!... – o que atrasa as reformas.
Tocou-se,
portanto, no “ponto sensível” de todos. Daí que eu tenha muitas dúvidas que
tratar logo em 2011 de reduzir pessoal e pensões (os aspetos da reforma do
Estado agora em causa) só ia conseguir “envenenar” o ambiente político, o que
me parece que inviabilizaria o Acordo de Concertação Social alcançado. Basta
ver o que está a custar a Paulo Portas elaborar e divulgar o “guião da reforma
do Estado”. É fácil dizer o que se devia ter feito em 2011, pois não há maneira
de saber como teria sido. E também não se pode provar que não haveria Acordo de
Concertação Social – mas se ele já foi difícil então, é razoável supor que
seria inviável agora com todos os parceiros sociais contra o Governo.
Mas
enquanto, coletivamente, não estivermos decididos a reduzir as despesas do
Estado, não vamos reduzir o défice (porque todos queremos pagar menos impostos).
E se não reduzirmos o défice, podemos precisar de mais apoio externo (segundo
resgate). Se não fosse a terrível humilhação internacional e a dureza do que ele
exigirá, o novo resgate era sedutor, pois pode ser a única forma de mostrar com
clareza aos que não querem perceber que há que cortar despesas públicas. O
problema maior é que os que não querem ver são os que passam com pouco
sofrimento por tal situação; porque os que mais sofrem não formam lobbys nem têm
capacidade de fazer pressão nos media.
A
maior preocupação vem da conduta dos dirigentes do PS, que dão sinais
consistentes de oposição aos cortes a realizar, e de vontade de inverter os
cortes já realizados, nas despesas públicas. É o discurso usual para ganhar eleições
em Portugal (estamos em período eleitoral). Mas era desejável que os
portugueses tivessem coletivamente aprendido que foi essa conduta, com êxito
eleitoral (prometer aumento de despesas com o dinheiro dos contribuintes), que
nos sobre-endividou e trouxe à bancarrota; e que nos vai manter a ela
“encostados” se não reduzirmos depressa o défice público. Claro que para não
reduzir despesas e evitar enfrentar lobbys (pois opor-se-lhes tem relevantes
custos mediáticos e de popularidade), o PS fala sempre em crescimento, coisa
que quase não conseguiu de 2005 a 2011; aliás, só em 3 trimestres se superou o
recente aumento de 1,1% do PIB. Esta conduta faz prever que o PS, para
conseguir voltar ao Governo, voltará a prometer tudo e o seu contrário aos
eleitores com o dinheiro dos contribuintes. E não sei se os portugueses não vão
deixar-se seduzir pelos discursos bem-sonantes, como tradicionalmente fizeram
antes. Que os dirigentes do PS, ofuscados pelas pressões eleitorais, sejam
incapazes de perceber a mudança necessária não surpreende. Mas que tantos
portugueses, que estão a pagar e a sofrer os exageros, não percebam e não
exijam mais seriedade aos partidos do arco da governação custa a entender;
porque se não o fizerem, dentro de poucos anos o país pode voltar de novo à
bancarrota, e já se sabe quem mais vai sofrer com ela – os que não têm voz nos
media para protestar.
Esta
crise é uma oportunidade para as elites portuguesas* revelarem um papel de
liderança. Porém, se considerarmos as posições públicas das elites condensadas
em torno da reforma dos colégios militares, que podiam dar o exemplo de redução
de despesas públicas (até porque não são desfavorecidos, em geral) e que não
desistem de depender do Estado, fica uma sensação de “orquestra do Titanic”.
Penso
que a nossa única esperança é que a União Europeia trave os desvarios
despesistas antes de eles serem graves. Mas, a avaliar pela falta de
fiscalização do passado e pela tendência de tentar qualquer coisa que pareça
não ter custos, duvido da eficácia desse mecanismo e temo que mais facilmente
emerja um consenso nacional para deixar o Euro do que para equilibrar as contas
públicas.
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Definidas num sentido descritivo (dirigentes e titulares de posições de topo no
Estado e nas demais organizações, incluindo empresas) e não normativo (os
melhores), porque raramente coincidirão.