quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Estado de chocrates

Há umas quantas pessoas a dizer nos media e nas redes sociais que o país está em estado de choque, e que é um choque como nunca houve: deve ser um estado de chocrates.
O primeiro choque, agradável aliás, foi ver tantas caras convertidas ao Estado de Direito Democrático em tão poucos dias. Quando ainda há dias não hesitavam em considerar culpados tantos que não foram sujeitos a julgamento nem sequer foram acusados, quando davam por certas as especulações, e quando exigiam que outros extraíssem consequências sobre casos por julgar, é bom saber que afinal são pela presunção de inocência. Ainda há dias queriam prevenir tudo e mais alguma coisa, privando, sem hesitar, as pessoas das suas liberdades – veja-se Jorge Sampaio que defendia em 2005 a inversão do ónus da prova no combate à corrupção (http://publico.pt/politica/noticia/jorge-sampaio-defende-inversao-do-onus-da-prova-apenas-em-materia-fiscal-1234825); agora reconhecem que as liberdades e a presunção de inocência devem ser preservadas. Como é reconfortante saber que, afinal, os formalismos do Estado de Direito Democrático não são meras abstrações jurídicas – afinal, são importantes (e dão jeito).
O segundo choque, de espanto, e também sobre tantos daquele coro, foi o de se concentrarem nos formalismos da detenção e não no conteúdo das suspeitas. Tantos discutiram a fuga de informação que levou as TVs ao aeroporto, mas deixaram passar em branco que Sócrates tinha feito o check-in um dia antes e não embarcou de Paris para Lisboa; porque faria isso? Mas, sobretudo, diversos juristas, jornalistas e comentadores indignados com as fugas de informação olharam para o lado das implicações de um primeiro-ministro que terá praticado atos de corrupção; disto não falaram. De repente, certos profissionais das cenas deixaram de fazer cenários e prospetiva; nem analisam as eventuais implicações das acusações.
O terceiro choque, ainda de espanto: havia um coro generalizado pela necessidade de combater a corrupção e de prender pessoas, por haver uma presunção generalizada de que a corrupção permeava a política, e que “a Justiça” era ineficaz perante a corrupção. Ainda há uma semana “a Justiça” estava a atuar bem no caso dos Vistos Gold, onde os mesmos não duvidavam da corrupção nem das culpas dos suspeitos e de muitos outros. Mas logo que “a Justiça” atuou sobre um político importante, com suspeitas de corrupção, muitos do coro suspeitam que “a Justiça” está a atuar mal e demais.
O quarto choque, só para alguns, é certo, foi a surpresa por não se verem todos os amigos e apoiantes de Sócrates a dizer de imediato: “eu conheço-o; sei a vida que leva; não acredito que haja qualquer fundamento nas acusações; eu acredito que é inocente.” Só vários dias depois apareceram algumas caras a dizê-lo, e depois de várias pessoas terem notado esse silêncio nas redes sociais. Que Soares o tenha dito, faz logo lembrar o livro “Contos Proibidos” e o encontro de Soares com o seu amigo socialista e condenado Craxi exilado na Tunísia. Há sempre pessoas que se consideram acima da lei; outras, nem distinguem o bem do mal na conduta própria, atribuindo o mal sempre a outros – situações que parece ajustarem-se a Soares e a Sócrates. Só quem acha que Soares é o “pai da democracia” pode desculpar as suas afirmações junto à prisão de Évora; seguindo a metáfora, também há pais que maltratam os filhos...
O quinto choque, também limitado, foi ver tantos que se indignaram contra as declarações de Cavaco Silva sobre os seus rendimentos, pelo insulto que isso seria aos cidadãos com fracos rendimentos, mas não aplicaram o mesmo sentido crítico a Sócrates – aquele que quando Portugal estava perto da bancarrota estava preocupado com a sua imagem nas TVs; ou aquele que exibia um estilo de vida que não escondia ser luxuoso, ainda por cima inconsistente com os rendimentos que o próprio alegava ter. Espanta, ainda, que tantos que dizem preocupar-se muito com a corrupção, e que procuram mostrar-se tão bem informados, não se tenham questionado antes, e agora evitem “o elefante na sala”.
O sexto choque, também agradável, foi ver que o aproveitamento político da situação ficou aquém do que muitos esperávamos, sobretudo da tralha socrática; foi muito bom ver que só Soares e poucos mais apareceram com teorias da conspiração – veremos se o dique aguenta. Confesso que gostava de ouvir Vara a este respeito: quantas caixas de robalos compõem €20 milhões? Ou a unidade de conta é caviar?
Não me choca o que está a ocorrer com Sócrates; nem me choca uma eventual condenação de Sócrates em tribunal.
Não duvido que Sócrates é culpado de alguma coisa.
Pelo menos, é culpado de levar Portugal à beira da bancarrota, e poucos políticos em Portugal têm esse palmarés; outro é… Oops… Soares. Porque não criou as condições para travar ou inverter o crescimento do endividamento privado. Por aumentar demasiado o endividamento público. Por desorçamentar, através da criação de empresas públicas, institutos públicos, fundações públicas e PPP, que acabaram sempre por onerar os contribuintes, porque tinham sempre o Estado como fiador. Por uma cultura de imagem e propaganda, isto é, de ilusões, assente em obras e anúncios de obra, sem querer saber como isso viria a onerar os contribuintes. Por se promover à custa dos contribuintes. Quiçá, literalmente.
Está ao alcance de todos avaliar a obra de Sócrates. E haverá sempre franjas que apreciarão tal obra. Como há sempre quem defenda ditadores e maus políticos: por mais maldades que tenham feito, haverá sempre algo que fizeram de bom a alguém e esse alguém estará reconhecido.
Mas o que está agora em causa é a relação de Sócrates com a sociedade numa matéria muito bem delimitada e técnica; e a sociedade delega em determinados especialistas a capacidade de avaliar em profundidade, os factos e condutas que reprova. Criticar os julgamentos na praça pública e querer saber tudo do processo não é só uma inconsistência – é perverso, porque só agrava tais julgamentos.
Neste momento, quem tem de saber é quem está no processo judicial; e quem tem de saber sabe. Quem não tem de saber, não sabe, não se deve meter, e deve deixar funcionar os mecanismos da administração da justiça. Quando muito, quem queira ajudar, que ofereça os seus préstimos ao advogado de defesa ou use a liberdade de expressão para defender Sócrates e afirmar a sua inocência (algo me diz que terei pouco eco nestas sugestões…).
Temos de ser compreensivos com todos os que estão a enfrentar a possibilidade de um dia poderem ter de reconhecer que votaram num corrupto, e que o defenderam, ao mesmo tempo que invetivavam contra a corrupção; e é óbvio que o problema pode alcançar os dois milhões e meio de portugueses (votantes de Sócrates). Muitos recusar-se-ão a enfrentar a realidade; há sempre alguns fanáticos. Para os demais terem de reconhecer um erro tão grande, e tão avisado, é muito duro; afinal, elegeram-no e também são responsáveis pela quase-bancarrota em que Sócrates deixou o país.
Mas também temos de ser compreensivos com aqueles que nem gostaram nem gostam de Sócrates, mas que estão em choque com o processo e a situação de Sócrates, por outras razões: intuem que isto não ajuda nada António Costa, e que pode levá-lo a perder as eleições e a manter-se a atual maioria, e a generalidade das suas políticas (incluindo o corte ou fim dos benefícios extraídos do Estado).
É uma manifestação do nosso tradicional sebastianismo: como disse Jorge Dias, o português “[…] no seu intimo alberga uma certa esperança de que as coisas aconteçam milagrosamente.” Não são poucos os que vivem na ilusão de que a mudança de governo vai trazer milagrosamente o fim da austeridade ou o Estado a gastar como antes. E não aprendem, apesar de serem recentes e estarem bem à vista os resultados da França de Hollande, que era anunciada como a referência da mudança. Só é de desejar que sejam uma minoria. Talvez uma vela em Fátima consiga esse milagre. Eu prefiro uma vela pelo milagre do realismo. Vou lá hoje.