Há umas quantas pessoas a
dizer nos media e nas redes sociais que o país está em estado de choque, e que
é um choque como nunca houve: deve ser um estado de chocrates.
O primeiro choque, agradável
aliás, foi ver tantas caras convertidas ao Estado de Direito Democrático em tão
poucos dias. Quando ainda há dias não hesitavam em considerar culpados tantos
que não foram sujeitos a julgamento nem sequer foram acusados, quando davam por
certas as especulações, e quando exigiam que outros extraíssem consequências
sobre casos por julgar, é bom saber que afinal são pela presunção de inocência.
Ainda há dias queriam prevenir tudo e mais alguma coisa, privando, sem hesitar,
as pessoas das suas liberdades – veja-se Jorge Sampaio que defendia em 2005 a
inversão do ónus da prova no combate à corrupção (http://publico.pt/politica/noticia/jorge-sampaio-defende-inversao-do-onus-da-prova-apenas-em-materia-fiscal-1234825);
agora reconhecem que as liberdades e a presunção de inocência devem ser
preservadas. Como é reconfortante saber que, afinal, os formalismos do Estado
de Direito Democrático não são meras abstrações jurídicas – afinal, são
importantes (e dão jeito).
O segundo choque, de
espanto, e também sobre tantos daquele coro, foi o de se concentrarem nos
formalismos da detenção e não no conteúdo das suspeitas. Tantos discutiram a
fuga de informação que levou as TVs ao aeroporto, mas deixaram passar em branco
que Sócrates tinha feito o check-in um dia antes e não embarcou de Paris para
Lisboa; porque faria isso? Mas, sobretudo, diversos juristas, jornalistas e
comentadores indignados com as fugas de informação olharam para o lado das
implicações de um primeiro-ministro que terá praticado atos de corrupção; disto
não falaram. De repente, certos profissionais das cenas deixaram de fazer
cenários e prospetiva; nem analisam as eventuais implicações das acusações.
O terceiro choque, ainda de
espanto: havia um coro generalizado pela necessidade de combater a corrupção e
de prender pessoas, por haver uma presunção generalizada de que a corrupção
permeava a política, e que “a Justiça” era ineficaz perante a corrupção. Ainda
há uma semana “a Justiça” estava a atuar bem no caso dos Vistos Gold, onde os
mesmos não duvidavam da corrupção nem das culpas dos suspeitos e de muitos
outros. Mas logo que “a Justiça” atuou sobre um político importante, com
suspeitas de corrupção, muitos do coro suspeitam que “a Justiça” está a atuar mal
e demais.
O quarto choque, só para
alguns, é certo, foi a surpresa por não se verem todos os amigos e apoiantes de
Sócrates a dizer de imediato: “eu conheço-o; sei a vida que leva; não acredito
que haja qualquer fundamento nas acusações; eu acredito que é inocente.” Só
vários dias depois apareceram algumas caras a dizê-lo, e depois de várias
pessoas terem notado esse silêncio nas redes sociais. Que Soares o tenha dito,
faz logo lembrar o livro “Contos Proibidos” e o encontro de Soares com o seu
amigo socialista e condenado Craxi exilado na Tunísia. Há sempre pessoas que se
consideram acima da lei; outras, nem distinguem o bem do mal na conduta própria,
atribuindo o mal sempre a outros – situações que parece ajustarem-se a Soares e
a Sócrates. Só quem acha que Soares é o “pai da democracia” pode desculpar as
suas afirmações junto à prisão de Évora; seguindo a metáfora, também há pais
que maltratam os filhos...
O quinto choque, também
limitado, foi ver tantos que se indignaram contra as declarações de Cavaco
Silva sobre os seus rendimentos, pelo insulto que isso seria aos cidadãos com
fracos rendimentos, mas não aplicaram o mesmo sentido crítico a Sócrates –
aquele que quando Portugal estava perto da bancarrota estava preocupado com a sua
imagem nas TVs; ou aquele que exibia um estilo de vida que não escondia ser
luxuoso, ainda por cima inconsistente com os rendimentos que o próprio alegava
ter. Espanta, ainda, que tantos que dizem preocupar-se muito com a corrupção, e
que procuram mostrar-se tão bem informados, não se tenham questionado antes, e
agora evitem “o elefante na sala”.
O sexto choque, também
agradável, foi ver que o aproveitamento político da situação ficou aquém do que
muitos esperávamos, sobretudo da tralha socrática; foi muito bom ver que só
Soares e poucos mais apareceram com teorias da conspiração – veremos se o dique
aguenta. Confesso que gostava de ouvir Vara a este respeito: quantas caixas de
robalos compõem €20 milhões? Ou a unidade de conta é caviar?
Não me choca o que está a
ocorrer com Sócrates; nem me choca uma eventual condenação de Sócrates em
tribunal.
Não duvido que Sócrates é
culpado de alguma coisa.
Pelo menos, é culpado de levar
Portugal à beira da bancarrota, e poucos políticos em Portugal têm esse
palmarés; outro é… Oops… Soares. Porque não criou as condições para travar ou
inverter o crescimento do endividamento privado. Por aumentar demasiado o
endividamento público. Por desorçamentar, através da criação de empresas
públicas, institutos públicos, fundações públicas e PPP, que acabaram sempre
por onerar os contribuintes, porque tinham sempre o Estado como fiador. Por uma
cultura de imagem e propaganda, isto é, de ilusões, assente em obras e anúncios
de obra, sem querer saber como isso viria a onerar os contribuintes. Por se
promover à custa dos contribuintes. Quiçá, literalmente.
Está ao alcance de todos
avaliar a obra de Sócrates. E haverá sempre franjas que apreciarão tal obra.
Como há sempre quem defenda ditadores e maus políticos: por mais maldades que
tenham feito, haverá sempre algo que fizeram de bom a alguém e esse alguém
estará reconhecido.
Mas o que está agora em causa
é a relação de Sócrates com a sociedade numa matéria muito bem delimitada e
técnica; e a sociedade delega em determinados especialistas a capacidade de
avaliar em profundidade, os factos e condutas que reprova. Criticar os
julgamentos na praça pública e querer saber tudo do processo não é só uma
inconsistência – é perverso, porque só agrava tais julgamentos.
Neste momento, quem tem de
saber é quem está no processo judicial; e quem tem de saber sabe. Quem não tem
de saber, não sabe, não se deve meter, e deve deixar funcionar os mecanismos da
administração da justiça. Quando muito, quem queira ajudar, que ofereça os seus
préstimos ao advogado de defesa ou use a liberdade de expressão para defender
Sócrates e afirmar a sua inocência (algo me diz que terei pouco eco nestas
sugestões…).
Temos de ser compreensivos com
todos os que estão a enfrentar a possibilidade de um dia poderem ter de
reconhecer que votaram num corrupto, e que o defenderam, ao mesmo tempo que
invetivavam contra a corrupção; e é óbvio que o problema pode alcançar os dois
milhões e meio de portugueses (votantes de Sócrates). Muitos recusar-se-ão a
enfrentar a realidade; há sempre alguns fanáticos. Para os demais terem de
reconhecer um erro tão grande, e tão avisado, é muito duro; afinal, elegeram-no
e também são responsáveis pela quase-bancarrota em que Sócrates deixou o país.
Mas também temos de ser
compreensivos com aqueles que nem gostaram nem gostam de Sócrates, mas que
estão em choque com o processo e a situação de Sócrates, por outras razões:
intuem que isto não ajuda nada António Costa, e que pode levá-lo a perder as
eleições e a manter-se a atual maioria, e a generalidade das suas políticas
(incluindo o corte ou fim dos benefícios extraídos do Estado).
É uma manifestação do nosso tradicional sebastianismo:
como disse Jorge Dias, o português “[…] no
seu intimo alberga uma certa esperança de que as coisas aconteçam
milagrosamente.” Não são poucos os que vivem
na ilusão de que a mudança de governo vai trazer milagrosamente o fim da
austeridade ou o Estado a gastar como antes. E não aprendem, apesar de serem
recentes e estarem bem à vista os resultados da França de Hollande, que era
anunciada como a referência da mudança. Só é de desejar que sejam uma minoria.
Talvez uma vela em Fátima consiga esse milagre. Eu prefiro uma vela pelo
milagre do realismo. Vou lá hoje.