quinta-feira, 22 de outubro de 2015

SeCostados


Passado quase um ano sobre o último texto que publiquei neste blogue, só os resultados das eleições legislativas de 04-Out-2015 trouxeram factos que me levam a nova reflexão; deixo-a aqui e agora – longa, mas tão curta quanto podia ser uma análise crítica que tinha de ser abrangente.
Começo com um gráfico que reúne os principais resultados eleitorais desde 1980 (sem os resultados de partidos pequenos e efémeros). Ajuda-nos a colocar alguma perspetiva e dinâmica nas coisas, já que a visão instantânea, fotográfica é sempre redutora.
 
Votantes e Abstenção
Deste gráfico ressalta o crescimento quase constante do número de inscritos para votar, ficando um milhão abaixo da população recenseada. Isto implica que, sobretudo, os menores de 18 anos sejam perto de um milhão. Parece pouco, quando a população dos ensinos pré-escolar, básico e secundário são mais de um milhão e meio (PORDATA, 2013). Portanto, existe uma fundada suspeita que o número de eleitores inscritos está acima da realidade – quiçá por se manterem nos cadernos eleitorais um milhão ou mais de cidadãos portugueses eleitores que já não o são de todo.
O gráfico revela ainda que o número total de votantes tem oscilado; erra pouco quem afirmar que desde há 20 anos votam nas eleições parlamentares 5,5 milhões. É certo que há uma redução consistente, mas suave, na última década (2005-2015); mas a redução em 2015 pode dever-se sobretudo à emigração de 200 mil pessoas desde 2011.
Combinando os números dos eleitores e dos votantes resulta que a abstenção não terá crescido tanto quanto se diz no espaço mediático; dito de outro modo, há indícios credíveis de que se os cadernos eleitorais forem atualizados, a abstenção pode ter estabilizado nos 35%. Se assim for, os portugueses não estarão a distanciar-se da política tanto quanto dizem os comentadores.
De resto, a abstenção no Reino Unido e nos EUA em eleições comparáveis também ronda e excede os 40%: no RU foi 40% em 2011; e 33% em 2015, mas estas eleições tiveram grande afluência pelo receio de empate; nos EUA, desde 1970 que não é inferior a 40% e já chegou a 50%. Estes países são muito relevantes porque têm sistemas eleitorais com uma ligação forte entre eleitos e eleitores. Note-se que as fracas restrições à posse de armas nos EUA devem-se à forte ligação entre eleitos e eleitores. Quem defende que a elevada abstenção revela que o sistema eleitoral português é mau e tem de mudar, ou que a política é especialmente má por cá, tem de rever a sua posição. Mas trazer algum realismo aos que defendem que a abstenção é um sintoma de doença da democracia portuguesa e que a doença reside no sistema eleitoral é matéria para outra reflexão.
Este ponto é importante, porque revela que é relativamente estável o número de portugueses (5,5  milhões) que se interessa por votar e pelo governo – e é provável que não varie muito o número de portugueses (3,5 a 4 milhões) que se mantém alheado do voto e dos destinos do governo.
Adiante especulo sobre as explicações para este alheamento. Mas para já importa notar que não se pode considerar que a abstenção se deve a falta de escolha: concorreram 17 partidos a estas eleições – mas apenas 7 partidos (ou 5 forças políticas, considerando as coligações) elegeram deputados.
Resultados eleitorais
Penso que só o BE e o PAN têm razões para se sentirem contentes com os resultados das eleições de 04-Out-2015: o BE, porque duplicou os votos e os deputados; e o PAN, porque conseguiu entrar no parlamento pela primeira vez. Os demais partidos estarão
- tristes mas não muito, porque perderam a maioria absoluta que tinham coligados (PSD e CDS, PaF) mas ainda ganharam as eleições; e o PSD tem mais deputados eleitos do que o PS;
- muito tristes, porque não tiveram maioria absoluta nem ganharam as eleições (PS); ou porque nem sequer entraram no parlamento, ficando atrás do PAN (PDR/M.e Pinto, e Livre/R.Tavares);
- aliviados, porque mantiveram os 450 mil votantes do costume (PCP).
Em termos simples, 2 milhões preferiram quem lhes prometeu manter a prudência e várias restrições às despesas e às obras públicas, até virem melhores dias (PaF). E 3 milhões votaram em vários partidos que rejeitaram tais prudência e restrições, usando as expressões “fim da austeridade” e “mudança” (PS, PCP e BE). Isto é, 25% do povo preferiu forças que não prometem “leite e mel”; e 38% preferiu forças que prometem. Mesmo depois de estar bem à vista que prometer “leite e mel” na Grécia (com o apoio destes partidos por cá) apenas piorou a situação grega e trouxe novo resgate ainda mais duro do que o que estava em curso – aplicado pelos que garantiram que a austeridade tinha acabado. É importante registar estes factos, pois é muito frequente a crítica de que os políticos mentem ou fazem promessas que não podem cumprir; mas só alguns são criticados por isso.
Este fenómeno já era conhecido dos gregos antigos, que notavam que a demagogia (prometer “leite e mel” para recolher apoios) era o maior perigo da democracia; disse Aristóteles (Política): “A principal causa das mudanças é, nos estados democráticos, o atrevimento dos demagogos”; mais à frente “A democracia de Heracléia também deveu a ruína a seus demagogos”; ainda “quase todos os tiranos são demagogos que conseguiram crédito junto ao povo atacando os nobres” (troque-se “nobres” por “ricos” ou “bancos” e a frase é atual); por fim, “Se houver rendas suficientes, não se deve, como fazem os demagogos, distribuir à arraia-miúda o dinheiro que sobrar” (a possibilidade do crédito nas economias modernas esvaziou a palavra “sobrar”: se faltam recursos ao Estado para distribuir, contrai-se dívida, e alguém pagará no futuro – e não faltam demagogos por aí a dizê-lo e a fazê-lo).
Portugal não será diferente dos demais países, quanto à preferência da maior parte do povo por demagogos, que depois desiludem na governação. Mas seria de esperar que a bancarrota, o fracasso da aventura grega e a desilusão com a prática dos demagogos levasse os iludidos a rejeitar as campanhas de promessas de “leite e mel”, pelo menos quando houvesse campanhas contrárias a essa linha; quem faz campanhas sem prometer “leite e mel” arrisca mais a derrota do que quem promete “leite e mel”, pelo que é mais provável que esteja a dizer a verdade – que é aquilo que quase todos os eleitores dizem que falta. Mas se a maioria dos eleitores não rejeita as promessas de “leite e mel”, está a sinalizar que é a prometer “leite e mel” que se ganham eleições e a garantir sucesso aos demagogos. Como se podem depois queixar de terem sido enganados?
Nenhum partido ou coligação teve maioria absoluta. É especialmente importante sublinhar este ponto, pois os dirigentes do PS e do PaF, e até o Presidente da República (PR), insistiram muito na vantagem de sair destas eleições uma maioria absoluta – poucos duvidaram que se visava uma maioria absoluta do PaF ou do PS e nenhuma outra. Desde logo, a maioria dos eleitores desprezou este apelo: nem se votou em maior número (caso do RU) nem se concentraram votos num polo. Os portugueses, abstendo-se, ou votando e dispersando-se, criaram um parlamento em que só dois partidos pequenos (BE e PAN) estão satisfeitos com o resultado, e só dois partidos (PCP e BE) ganharam com o resultado.
Pode interpretar-se esta conduta dos portugueses como indicando que o PaF deve ser moderado pelo PS; ou desejando que o PS se coligue com o PCP e o BE. Entretanto, uma sondagem da Intercampus revelou que cresceu a preferência dos portugueses pelo PaF (sem chegar à maioria absoluta) e, muito menos, pelo PS e pelo BE (TVI, 18Out/20h). Parece haver entusiasmo à esquerda, mas a vontade de consenso é maior ao centro; se houvesse uma clara deslocação de preferências dos eleitores para o PS, Costa podia reclamar que a sua ideia de se aliar ao PCP e ao BE era aprovada pelo povo. Mas não há.
Há outro plano mais abstrato de interpretação dos resultados eleitorais, que opera no âmbito psicológico dos eleitores. Os portugueses esperam que os políticos melhorem as suas vidas; é nesse sentido, de fé num Estado paternalista e em políticos-tutores, que se pode dizer que a maioria dos portugueses é de esquerda. Dos discursos marxista-leninista (“os ricos que paguem a crise”) e social-democrata (“tem de se reduzir as desigualdades”) resultam promessas de um Estado que cuida de todos, e políticos que só servem o interesse público (e acordo universal sobre o que isso é). E tantos portugueses têm fé nestes discursos – os mesmos portugueses que se queixam do Estado por tudo e por nada, na tradição da constante lamúria de que falava Gil Vicente na “Romagem dos Agravados”, ou da inveja de que falava Camões em “Os Lusíadas”. Combinando estes aspetos tipicamente portugueses com a tendência das massas seguirem os demagogos em democracia obtém-se um futuro sombrio.
Costa, o revisionista
Noutros tempos, o vencedor das eleições avançaria de imediato para a formação do governo e, sem maioria no parlamento, trataria de fazer cedências para ir aprovando as leis e o Orçamento de Estado em especial. Desta vez, algo mudou: o líder do segundo partido mais votado (PS), Costa, iniciou de imediato diligências para formar um governo com mais dois partidos (PCP e BE), de modo a ter apoio maioritário no parlamento; e chegou a declarar a media estrangeiros e ao PR que ele estava em melhores condições para formar um governo estável, assente num acordo entre esses três partidos (PS, PCP e BE) – mas não revelou o acordo que disse existir, e o presidente do PS declarou que o acordo só seria divulgado após a indigitação do primeiro-ministro (SIC, 20-Out/20h). Costa disse que representava a vontade de mudança que a maioria do eleitorado, que votou naqueles três partidos, desejará.
Este sumário descreve a situação objetivamente, mas pouco ajuda a percebê-la, porque lhe faltam muitos elementos e pormenores que estruturam as situações e as dinâmicas políticas em concreto; e, como diz o ditado inglês, “the devil is in the details”.
Primeiro, que disseram todos antes das eleições?
Costa andou anos na Quadratura do Círculo a dizer que era contra um Bloco Central, e cumpriu o que disse ao romper o acordo que Seguro tinha feito com o PSD e o CDS sobre o IRC (de caminho, mostrou que não é pessoa para cumprir pactos em vigor e de que discorda – importante facto a reter). E tem sido muito crítico do Tratado Orçamental e da prudência na condução das finanças públicas. Costa nunca quis admitir outro cenário que não fosse a vitória do PS e por maioria absoluta; e sublinhou que não se coligaria com o PaF após as eleições – nunca sugeriu sequer que admitia coligar-se com o PCP e o BE, e poucos admitiram essa eventualidade depois dos debates nas TVs entre estes partidos.
O PCP e o BE há décadas que andam a dizer que o PS é de direita (“são farinha do mesmo saco”, disse Jerónimo em 15-Set-2015), pelas políticas que pratica e por se aliar ao PSD e ao CDS nas políticas de fundo. O PaF mostrou que tinha abertura para negociar compromissos com o PS; já não parece possível que o PaF possa negociar compromissos com o PCP ou o BE.
Na substância, o PaF quebrou a tradição das campanhas eleitorais constituírem um leilão, com os partidos a prometerem mais do que os concorrentes: o PaF não prometeu benefícios nem melhorias imediatas nos rendimentos; só desejou que elas venham a ocorrer a prazo. Já o PS, o PCP e o BE prometeram que, com eles no governo, aumentariam os benefícios que o Estado disponibiliza, que tratariam de reduzir os impostos para a classe média e alguns grupos, e contestaram a subordinação às restrições financeiras inerentes à inserção na Zona Euro (o PS mais próximo de as aceitar, mas querendo discuti-las; os demais rejeitando-as em absoluto).
Cabe ainda notar que, pela primeira vez, um partido fora do Governo (PS) apresentou um programa apoiado num modelo macroeconómico. Tem natureza keynesiana, algumas das suas medidas foram discutidas, mas não os seus pressupostos: um deles é a taxa de crescimento anual do PIB de 2,6% de 2016 a 2018 e 3,6% em 2019 – média que os governos do PS de 2005 a 2011 nunca conseguiram (nem antes de 2008), e que não ocorre há 20 anos; há 15 anos que não se atinge um crescimento anual do PIB de 2,6%. Se é polémica a orientação keynesiana – moderada como é o caso – para conseguir impulsionar o crescimento do PIB, aqui e agora, uma taxa média de 2,8% de 2016 a 2019 devia ter merecido muito mais escrutínio e debate do que mereceu. Parece que muitos comentadores não perceberam este facto, por se terem contentado com o facto de haver um programa com números, ou por não os perceberem. De facto, o PS propôs um programa otimista, pouco credível.
Segundo, “mudança” e “austeridade” querem dizer o mesmo para os três (PS, PCP e BE)?
Não. “Austeridade” para o PCP e o BE significa não aumentar e cortar os benefícios que o Estado dá aos cidadãos. A adoração marxista pelo Estado em abstrato (já que, em concreto, merece as críticas mais violentas destes partidos) é uma expressão da ideologia coletivista e transpersonalista que os move. Já o PS reconhece a necessidade da austeridade, como revelam os dirigentes que falam em “austeridade excessiva” e “austeridade cega”; há, então, uma austeridade que não é excessiva ou não é cega, o que permite compromissos com quem defende prudência e restrições nas despesas do Estado.
Quanto a “mudança” passa-se o mesmo. E pode acrescentar-se que a inspiração marxista-leninista (assumida) do PCP e (encapotada, mas revelada nos objetivos e nos instrumentos) do BE significa que estes partidos visam uma mudança de regime, porque não se reveem no Estado de Direito nem na democracia liberal, que é formal. Não só contestam frequentemente a natureza formal em que assenta o Estado de Direito, como só falam em “Estado Social” (a menos que alguns direitos, como a presunção de inocência, lhes deem jeito e votos), criticam a democracia e defendem que visam alcançar uma “verdadeira democracia” e a “democracia económica”; de resto, a sua linguagem e a sua dualidade de critérios revelam intolerância e anunciam revanchismo – e onde governaram ou governam marxistas-leninistas foram intolerantes e revanchistas. Numa metáfora, o marxismo-leninismo, como o islamismo e os fascismos, veem o Estado de Direito e a democracia liberal como um autocarro: usa-se para chegar onde se quer e depois larga-se. Já o PS visa adotar uma política keynesiana, de estímulos à procura para acelerar o crescimento económico, a qual se enquadra no sistema capitalista e na democracia liberal (mas a experiência mostra que é uma política equivocada – veja-se Portugal de 2005 a 2011 – pois assenta na ideia de que gastando hoje em consumo final dinheiro que não há, isso vai fazer com que haja mais dinheiro amanhã para consumo e investimento – pode acontecer, mas não é na nossa economia, sem soberania monetária, muito endividada e dependente do exterior).
Tendo o PS abandonado há décadas o marxismo como fonte doutrinária, é bizarro que considere que a mudança que visa tem algo em comum com a mudança preconizada pelo PCP e pelo BE. Ou melhor: há socialistas (p.ex. Assis, Gama e, suspeita-se, até Soares, cujo silêncio tem sido ensurdecedor) que percebem as diferenças doutrinárias e que a coincidência no uso de certas palavras (sobretudo “austeridade” e “mudança”) é tática e circunstancial, e não traduz um espaço de compromisso ou acordo, do qual possa emergir um governo estável e consistente.
Enfim, os próprios dirigentes destes partidos têm afirmado e reiterado que visam evitar que o PSD e o CDS voltem a governar; apresentam-se como uma coligação negativa, e para inverter o que foi feito.
Terceiro, como fica o PS no governo e na oposição?
Aliado ao PCP e ao BE, o PS depende deles para tudo; viabilizando condicionalmente o PaF, o PS controla o PaF. É mais racional para o PS viabilizar o PaF do que aliar-se ao PCP e ao BE: com o PAF, tem poder de influência na governação; com o PCP e o BE, depende totalmente deles para governar.
Viabilizando o PaF, Costa não passa de deputado, sujeito a risos e piadas dos seus pares, por ser um derrotado que tinha condições ímpares para ganhar; ou pode ter de se sujeitar a arranjarem-lhe um emprego "dourado" algures, ficando a dever um importante favor a alguém. Aliado ao PCP e ao BE, Costa pode ser primeiro-ministro e passarem a dever-lhe favores a ele. Logo, Costa nada tem a perder e muito a ganhar. Costa pode dizer que não busca o poder a qualquer preço; mas Costa não convence, depois de ter derrubado Seguro por este ter ganho por “poucochinho”, e tendo Costa agora perdido, com um dos piores resultados de sempre do PS, não se demite e ainda tenta ser primeiro-ministro.
O PCP e o BE têm todo o interesse em que Costa se torne primeiro-ministro depressa e sem acordos escritos: não é difícil perceber que Costa se move por ambição pessoal, pelo que chegado a primeiro-ministro fará tudo para não cair (até para tentar passar a ideia de estabilidade e de compromisso). O BE e o PCP podem aproveitar-se disso para impor as suas exigências, que Costa tem de aceitar, senão eles abstêm-se (ou votam contra!) e Costa acaba por cair. Além disso, um acordo escrito pode criar mais oposição a Costa no PS; e as delongas podem permitir que se organize essa oposição. E se Costa perder no PS, o PCP e o BE perdem o poder que Costa – e só Costa – lhes concedeu.
Costa é habilidoso e, ainda que turvado pela ambição, planeará oferecer cargos aos dirigentes do PS mais hesitantes, que eles não poderão recusar, para conseguir ver aprovada a sua linha de ação no PS. Já no poder, dará benesses com utilidade eleitoral e que possa reclamar terem sido ideia sua (e não do PCP nem do BE), para obter a popularidade que permita alcançar uma maioria absoluta daqui a um ou dois anos. Talvez mais do que o BE, o PCP esperará a “mudança” de Costa a prazo (ninguém se esquece que Costa já traiu Seguro…), e daí que mostre pouco compromisso agora, queira exigir de Costa muito e depressa, e se prepare para essa “mudança”, de que obviamente Costa culpará o PCP ou o BE.
Veremos se, dentro de poucos anos, o PS não vai perder ainda mais do que as eleições de 2015, apenas para satisfazer a ambição pessoal de Costa. Suspeito que as benesses vão trazer problemas a tão curto prazo que muitos portugueses vão aceitar uma relação de causa-efeito entre as benesses e a crise seguinte, e culparão o PS que apoiou Costa, mais ainda do que culparam o PS que apoiou Sócrates.
Quarto, quem acredita e quem não acredita num acordo entre o PS, o PCP e o BE?
Arrisco-me apostar que ninguém – sublinho, ninguém, nem entre o “povo de esquerda” (como Alegre o batizou) – acredita num acordo PS-PCP-BE. Nenhum dos partidos envolvidos fala em aliança nem coligação, e o PCP até evita a palavra acordo. Ninguém concretiza qual o prazo que visa durar, nem o âmbito. Dizem os envolvidos que se está no bom caminho, mas não há factos; há fugas de informação que parecem “balões”. Parece haver acordo em algumas medidas mais simbólicas do que substantivas, que se concretizam no primeiro mês, e diz-se que as questões de fundo que dividem o PS do PCP e BE (relação com a UE e o Tratado Orçamental, integração na NATO e posição face à dívida pública) são ignoradas (ignorar programas e questões de fundo, com significativas implicações práticas e correntes, para que três partidos formem um governo é algo que nunca pensei ver defendido por um dirigente político de primeira linha; mas Costa fê-lo e reiterou-o desde 04-Out).
É importante registar que há numerosos militantes e simpatizantes do PS que não acreditam num acordo entre o PS+PCP+BE e, presumivelmente, num governo; destaco T.Santos, A.Beleza, Assis, S.S.Pinto, Carlos Silva, Zorrinho, Jaime Gama, Vitorino (“acredito quando vir!”), Soromenho Marques e Marçal Grilo. Relevante, especialmente por falar de tudo, é o silêncio de Mário Soares (“resolve-se com inteligência!”). E tão significativo como isso, é que não há figuras destacadas do PS (fora do círculo que vive à sombra de Costa) que defendam a linha de ação de Costa; podem atacar o PaF, mas não chegam a dar a cara pela defesa de Costa, e muito menos uma defesa com argumentação robusta.
Vários jornalistas e comentadores revelam fé na existência desse acordo, mas mais pelo seu desejo pessoal de não ver o PaF outra vez no Governo, do que por acreditarem na viabilidade de um governo PS+PCP+BE. Até os jornalistas-comentadores do Grupo Impresa – os verdadeiros lideres da Oposição antes de 04-Out, que levaram Costa ao colo o mais que puderam e que acabaram por perceber que foi um esforço duro e inglório – revelam pouca confiança ou mesmo desconfiança em Costa.
Evidentemente que o PaF tem um incentivo para desvalorizar as posições de Costa. Mas com tantas dúvidas, com origem em tantos setores, não se pode dizer que o PaF tenha uma posição sectária.
Uma última nota: os chefes militares têm conseguido manter algum poder de veto sobre as políticas dos governos (por exemplo, a desmilitarização do mar, que se impõe desde a revisão constitucional de 1982, tem sido tentada por vários governos e vetada por dirigentes da Armada). Como reagirão perante um governo sustentado por partidos que rejeitam a NATO? E como reagirão esses partidos, que defenderam a resistência dos chefes militares às políticas de cortes nas dotações orçamentais, se esses militares agora resistirem aos cortes que é previsível que venham a ocorrer com um governo PS+PCP+BE, pois não custa prever que cortará na defesa para aumentar a despesa em benesses a dar pelo Estado?
E agora?
O PS, o PCP e o BE arvoraram-se na vanguarda dos defensores da Constituição. Seria apenas coerente que agora defendessem a sua aplicação sem quererem “queimar etapas”. Ao visarem “queimar etapas” dão mais um sinal de que a Constituição e a democracia são, para eles (como Lenine defendia), um instrumento tático para alcançarem o seu objetivo estratégico de criação da sociedade socialista. Não é novidade para quem observa em pormenor estes partidos marxistas-leninistas, mesmo que evitem os títulos “queimados” pela História.
Por isso, o PR deve indigitar Passos Coelho (PSD) para primeiro-ministro, de modo a que os sucessivos passos constitucionais sejam dados e fiquem registadas as posições de cada um. Nunca é de excluir que as pessoas, confrontadas com as consequências das suas decisões e ações as repensem e mudem, por estarem a fazer “bluff” ou por falta de ânimo; o que pode traduzir-se em não chegar a haver acordo PS+PCP+BE, em o PS não aprovar o acordo que Costa lhe apresentar, ou em o programa do Governo do PaF passar no parlamento.
Cumpridos todos os passos e chegado Costa a primeiro-ministro, é inevitável:
- o aumento de despesas do Estado (correntes e de capital – isto é, obras públicas, tendo presente que em 2010 vários manifestos de esquerda pediram mais “investimento público” e que o bloco PS+PCP+BE rejeitou, por exemplo, a proposta do CDS de suspender a construção do TGV, http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/bloco_de_esquerda_e_pcp_rejeitam_suspensatildeo_do_tgv.html) para satisfazer as exigências do PCP, do BE e dos “lobbys” (todos perceberão a fragilidade de Costa e tratarão de a explorar);
- o aumento do défice do Estado e o aumento do défice externo, neste caso, porque o maior consumo vai trazer um aumento grande das importações; a seu tempo, aumentará também a dívida pública, pois não só não há nada mais valioso para privatizar e amortizar a dívida pública (exceto prédios), como o PS, o PCP e o BE falam em nacionalizar ou inverter as privatizações em curso;
- o aumento das taxas de juro da dívida pública e as pressões da UE para controlar os défices e cumprir o Tratado Orçamental;
- as atitudes quixotescas do PS+PCP+BE e a colisão com os parceiros do Euro, à custa dos portugueses.
Quando começar a faltar o dinheiro, Costa – como Sócrates – anunciará que “o mundo mudou”, culpará outros pelas desgraças em curso, tentará fazer novas eleições contando que as benesses que andou a distribuir lhe tragam a maioria absoluta e, seja quem for que então venha a governar, voltará a ter de aplicar cortes no Estado e nos rendimentos, e a consequente recessão. E a esquerda falará dos crimes da banca e da UE, e nem admitirá a presunção de inocência…
O que posso eu fazer? Para lá de não votar à esquerda, e deixar registadas as minhas reflexões, pouco posso fazer; talvez poupar mais, para sofrer menos quando – se Costa chegar a primeiro-ministro – dentro de um ou dois anos chegar um novo aperto, quiçá um novo resgate. E dizer a quem culpa a banca e fatores externos pelas nossas crises que era absolutamente previsível aquilo que estaremos então a passar, e que a culpa cabe aos 75% de portugueses que se alheiam da política, que ignoraram a experiência grega recente ou que preferem confiar em demagogos e utópicos do que na realidade dos factos e na prudência.
Aplicando os critérios de justiça que tantos do povo de esquerda proclamam, os 25% que não querem embarcar nesta aventura de governo PS+PCP+BE deviam ser dispensados de pagar a fatura quando ela vier. Mas não faltará quem entre esse povo, nessa ocasião, invoque direitos e justiça, para fugir a esses custos e deixá-los aos demais. Foi assim por três vezes em 40 anos, pode ser assim de novo e em breve – a menos que Costa não chegue a primeiro-ministro. Isso é que era bom!